• 08.02.22
  • 31 min
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A Nossa Torre: Thaís Velloso Cougo conta como era o JK no final dos anos 80

A historiadora Thaís Velloso Cougo sempre se dedicou ao patrimônio de Belo Horizonte. Formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em História pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (Fafich-UFMG) e doutora pela Universidade de São Paulo (USP), ela defendeu um mestrado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre o Conjunto JK no final dos anos 1980.

Em seu livro A Torre Kubitscheck – trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil, Thaís se voltou para questões da cultura e da cidade, tentando compreender as incongruências de Belo Horizonte e suas dicotomias, como modernidade x tradição e admiração x rejeição. 

O título do livro é uma referência ao discurso de posse de Juscelino Kubitscheck como Governador de Minas Gerais, em 1952, em que ele fala sobre o que seria a construção no coração da capital, quando o Conjunto JK era apenas um projeto: “A ‘marca registrada’ de Belo Horizonte, ou seja, o que é a Torre Eiffel para Paris, o Rockfeller Center para Nova Iorque”.

Thaís Velloso Cougo foi professora na UFMG por 30 anos, diretora do Museu Histórico Abílio Barreto e da Fundação Municipal de Cultura. Agora aposentada, comanda uma fazenda de café no interior de Minas Gerais, mas continua ligada às questões que nortearam sua carreira.

Em seu apartamento no centro da cidade, de onde se vê o JK, ela recebeu as jornalistas Mônica Cerqueira e Guga Barros para uma conversa. Thaís relembrou o rolo da construção, que durou cerca de vinte anos e falou sobre a percepção que os moradores da capital mineira tiveram e têm a respeito do conjunto de prédios.

“O Juscelino traz a novidade para a cidade: a novidade da arquitetura moderna, dos hábitos e costumes urbanos, em função da criação de espaços públicos, como todo o conjunto arquitetônico da Pampulha”

Mônica: Thais, fale sobre seu livro A Torre Kubitschek – trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil, publicado em 1993.

Thaís: O livro foi o trabalho final do meu mestrado na UNICAMP, em História Social. Eu fui para UNICAMP com uma ideia e saí com outra, em função das disciplinas que fiz lá. Fui interessada no mundo rural, trabalhar com ferrovia e saí interessada em cidades e, enfim, acabei olhando para o JK com interesse de pesquisadora a partir do que andei refletindo lá em Campinas, nas disciplinas que fiz com professores importantes nos anos 80, que são referências até hoje.

O JK se apresentou como objeto, na verdade, a partir de dois amigos. Na ocasião eu dava aula, eu estava no iniciozinho da minha vida de docente no curso de comunicação na faculdade Newton Paiva. E na Newton Paiva, curso noturno, eu era muito jovem ainda, eu encontrei esses amigos: um filósofo e o outro, economista. E eles eram primos. Renato e Lourival. Eles estavam, naquele momento- isso foi 1983, provavelmente… ou um pouco depois- 1984, talvez. Eu dando aulas lá me encontrei com eles e os dois estavam num apartamento no JK, emprestado por um amigo por um período pequeno, exatamente porque tinham a intenção de escrever algo sobre o JK.

Eles queriam refletir sobre o JK, mas não tinham um norte muito claro, talvez por causa da formação deles, economista e filósofo… Me convidaram para pensar com eles. “Você, como historiadora, vai nos ajudar”-  eu nunca morei no JK, mas fui muitas vezes nesse apartamento com os dois, e ali a gente ficava tecendo considerações sobre o que a gente percebia do prédio. Era algo até muito intuitivo ainda, porque eu não tinha, e nem eles tinham propriamente, um conhecimento específico da história daquilo ali. A gente sabia o que todo mundo que morava em Belo Horizonte sabia: do tempo de duração longo daquele empreendimento, daquela suspeição generalizada que a cidade tinha com a questão… 

A verdade é que eu fiquei muito instigada com nossas conversas e nesse momento eu estava terminando os créditos lá em Campinas. Eu falei: “Gente, eu não vou conseguir ficar só na superfície desse problema aqui, não. Eu, como historiadora, estou pensando em fazer uma pesquisa. Vou eleger esse tema como o tema do meu mestrado. O que que vocês acham?” Aí, eles acharam ótima a ideia, super me estimularam. E eu comecei a pesquisar o que já me interessava, porque eu tinha muito interesse em Arquitetura. Eu quis ser arquiteta, eu fiz vestibular para Arquitetura. Não passei uma vez, não passei a segunda, não passei a terceira. É muito engraçado isso, porque hoje em dia muita gente me procura por causa desse livro, achando que eu sou arquiteta. Enquanto eu fazia os vestibulares pra Arquitetura, eu estudei Letras. Eu fiz Letras na PUC- eu tinha muito fascínio, como tenho até hoje, pelas letras – por línguas e literatura. E eu fui estudando Letras, mas perseguindo aquele desafio de fazer Arquitetura. Não fiz, desisti. Fiz História, depois. Me formei em Letras, fui fazer a graduação em História, da graduação fui pro Mestrado, e…

Guga: … E aí, o destino te uniu ao JK!

Thaís: O destino me levou ao JK. Me uniu com a arquitetura de novo.

Guga: Marco arquitetônico de Belo Horizonte. A construção do JK demorou 20 anos. Como era Belo Horizonte nos anos 1950, quando foi proposto o conjunto JK? E como estava Belo Horizonte quando ele foi finalmente entregue para ser moradia?

Thaís: O momento do lançamento da ideia do conjunto JK é a década de 1950, e a figura política de projeção maior era o Juscelino, então já governador. O Juscelino tinha sido prefeito da cidade na década de 1940 e tinha revolucionado tanto o espaço urbano, quanto, digamos, a ação política na cidade. Juscelino era aquele cara carismático, um sujeito do PSD, um partido que estava posicionado… Hoje eu acho que a gente chamaria de uma centro-esquerda, difícil, né, esses conceitos? Mas, enfim, era anti- UDN (União Democrática Nacional), que era o que havia de mais radical e mais atrasado na política naqueles anos. E o Juscelino era aquele cara que era um técnico, era um médico, com uma história de vida… Vindo do interior, de família pobre, estudou com a peleja da mãe. Vindo de Diamantina, cidade da música, uma cidade colonial que ainda não tinha a importância que tem hoje – tinha, obviamente, para os locais, mas para o estado de Minas e para o Brasil, não. 

Então, Juscelino chega na cidade e apreende a cidade de uma maneira… que ele se dispõe a inovar. A cidade era muito jovem – se a gente pensar que ela é do final do século XX – quer dizer, nos anos 1940 a cidade tem 40 anos. E uma cidade concebida a partir de um plano diretor, de uma comissão que trouxe expoentes do planejamento urbano, com formação na França. Belo Horizonte era uma até a década de 1940 e foi se tornando outra, a partir desse tempo em que o Juscelino ocupa o cargo maior na prefeitura. Ele se torna prefeito e estimula, digamos, um movimento que pode ser visto, no meu entendimento, de um lado muito positivo, porque ele traz a novidade para a cidade: a novidade da arquitetura moderna, dos hábitos e costumes urbanos, em função da criação de espaços públicos, como todo o conjunto arquitetônico da Pampulha. E isso é, do ponto de vista cultural, muito importante – como do ponto de vista econômico, também. Porque os negócios se voltam para a expansão urbana, para uma área que ainda não tinha sido ocupada, e as alianças políticas entre empresários e o Governo constituído vão se fazendo cada vez de maneira mais decisiva. Mas quando eu digo que isso tem que ser visto de dois lados, eu estou dizendo também por que a cidade, nesse afã de se modernizar- e a palavra de ordem era essa! Ela faz ser passado, ou seja, ela faz virar passado aquilo que era muito recente, ainda. 

As elites começam a olhar para Belo Horizonte, que tinha sido construída há quarenta e poucos anos, como se ela fosse uma cidade doutros tempos… Na verdade, o ambiente urbano dela, de fato, espelhava muito mais aquela coisa, inspirada em Paris, no ecletismo das construções públicas. Ao mesmo tempo que a cidade conservava ainda, nos anos 1940, um certo ar de uma cidade do interior, porque tinha muita área desocupada ainda. O plano diretor, obviamente, fez o desenho urbano, e plantou/ definiu que áreas deveriam ser ocupadas por isso ou por aquilo. E implantou elementos urbanos públicos importantes, como é o caso de todo o acervo da Praça da Liberdade… 

Ao mesmo tempo, o governo do Juscelino, justamente pelas características que tinha, foi facilitando, por exemplo, o ingresso- a entrada- do grande capital na cidade. E não apenas do grande capital pensando a indústria, que vai crescer para a região da cidade industrial em Contagem, mas também – é um dado interessante, que a gente não está muito acostumada a pensar: Juscelino prefeito trouxe as grandes instituições de ensino para Belo Horizonte. Tirando as que são do início do século, como o Instituto de Educação, o antigo Sion, o colégio Santa Maria, esses outros colégios mais modernos, ou mais atuais, como o Loyola, como o Marista, como o Santo Agostinho.

Mônica: Santo Antônio…

Thaís: Santo Antônio… esses colégios, muitos deles foram atendidos em seus pedidos – todos pertenciam a congregações religiosas, que demandaram do poder público espaço para a construção dos colégios. Para entendermos que a cidade vive, de fato, uma mudança importante, que que se traduz no seu desenho urbano e também na sua cultura. Ele doou terrenos, para que essas congregações se fixassem, criando essa estrutura escolar importante.

” A praça Raul Soares, desde os anos 1930, era um espaço que estimulava aquela gente da cidade que queria viver no centro, que entendia a importância da centralidade, do estar no centro, do viver no centro para acessar o que culturalmente a cidade já oferecia”

Guga: E ainda cria o eixo Pampulha, convidando Niemeyer pra fazer o conjunto arquitetônico.

Thaís: Então… A Pampulha foi uma sacada genial do Juscelino! Para fazer com que a cidade se projetasse internacionalmente. Porque Belo Horizonte tinha uma marca original complicada, isso aqui era nada antes de Belo Horizonte ser implantada aqui – do ponto de vista econômico, do ponto de vista sociocultural, ambiental… Era o Curral del Rei. Mas, do ponto de vista econômico, as elites trabalharam tão bem a ideia da nova capital, que elas conseguiram implantar o projeto da nova cidade num território, digamos, “neutro”. Entre aspas, porque havia tanta disputa no Senado da província, para puxar a nova capital… Que era uma ideia- ou mais que uma ideia, era um entendimento – que em geral, governo e as elites tinham – de que Ouro Preto não toleraria o crescimento, era inviável. Até porque Ouro Preto já dava sinais evidentes de esgotamento enquanto urbes. E fazer crescer Ouro Preto seria extremamente oneroso e difícil, em todos os sentidos. 

Então, a sacada genial, que eu acho que teve o Juscelino, foi de entender que 40 anos depois de criada a nova capital, de inaugurada essa nova cidade, era preciso fazer algum movimento de peso, que pudesse ser noticiado nacional e internacionalmente, de modo a atrair recursos e atrair riquezas para Belo Horizonte. No meu entendimento, o que sustenta principalmente essa ação do Juscelino na Pampulha, foi isso. E aí, a criação… A feliz ideia de trazer o Niemeyer, um cara já respeitado… Niemeyer tinha ganho um prêmio internacional, quando trabalhou na construção do Palácio Capanema, no Rio. E o que vai realmente projetar o Niemeyer para fora do Rio de Janeiro e até do Brasil, é, sem dúvida nenhuma, a Pampulha. E eu acho que o Juscelino teve essa percepção de entender que o cara tinha um potencial incrível, que era um artista de grandeza, que prometia – enfim, que tinha consonância com as ideias que estavam em vigor no mundo dito “desenvolvido” à época. E o convite a Niemeyer foi, na verdade, o atestado de alguém que queria fazer algo para marcar a sua passagem por aquele lugar. É assim que eu sempre vi a decisão do Juscelino.

Guga: E seria o mesmo caso quando ele vira governador e decide fazer o JK?

Thaís: Eu acho que sim, porque primeiro, ele pôde avaliar o impacto que a Pampulha causou, ainda que esse impacto, num primeiro momento possa ter sido percebido como positivo/negativo. Positivo/negativo, porque havia resistência. No tempo da Pampulha e ainda no momento que o JK foi lançado, o Brasil vivia sob a ditadura Vargas ainda. A ditadura Vargas foi um tempo em que o Estado tinha um papel importantíssimo, no sentido de propor novas ideias, e a população idolatrava o ídolo de tal maneira, que não se apercebia da real situação da ditadura. É claro que essa idolatria se devia também aos benefícios trazidos pela ditadura Vargas, os direitos dos trabalhadores, por exemplo. Mas é um tempo de uma ditadura muito diferente da que a gente vai conhecer depois, em 1964, quando os militares chegam ao poder.

Guga: Mas quando Juscelino era prefeito e quando governador, o Presidente era Getúlio…

Thaís: O Getúlio – entre 1950-1954- era o Getúlio eleito. O Brasil vivia uma democracia. Na verdade, o ensaio de uma democracia. O Getúlio eleito. O interregno entre o fim do estado novo, 1945 e 1954 – quando da morte do Getúlio, foi um tempo em que a sociedade brasileira deu, ensaiou, os seus primeiros passos no sentido da construção da democracia. Então, quando Juscelino lança essa ideia aqui em 1952, o Governo Federal é Vargas de novo, trazido de volta pelos braços do povo. 

E o Juscelino se sente fortalecido o suficiente para propor um projeto que juntava um comunista- o Niemeyer, que era um nome de destaque- e o seu próprio nome, Juscelino- um sujeito eleito governador de um estado importante como era Minas… E o terceiro personagem, que é a figura do Rolla, o empresário enriquecido pela sua atuação na construção de hotéis e cassinos, que fazia subir do Rio de Janeiro para a Serra de Petrópolis a nata da sociedade carioca, para se hospedar no Quitandinha, para jogar no cassino do Quitandinha. O Rolla fazia enorme sucesso como empresário, por ter o seu nome envolvido nesses grandes empreendimentos. E sobre o empresário – quer dizer, o que se sabe, eu não fui tão a fundo na minha pesquisa, na busca da história do Joaquim Rolla, mas a pesquisa que fiz evidenciou uma suspeição generalizada da imprensa, que criticava o Juscelino e principalmente a UDN, que fazia oposição ferrenha ao Juscelino.

Guga: Ele é suspeito de ter privilegiado o Rolla para essa construção.

Thaís: Exatamente. E isso muda um pouco o curso da história do conjunto. E muda até o documento de identidade do conjunto JK, porque o Niemeyer se desagrada profundamente com a história. A ponto de sair fora e deixar o seu “filho” desprotegido. Eu acho essa história muito interessante, porque imagino o que rolou para além do que os jornais traziam. Os jornais eram sempre censurados, por um motivo ou outro, mas eu imagino o que terá sido nos bastidores, a discussão quando, na década de 1960, o Niemeyer simplesmente rompe com o projeto e o Estado está envolvido até a garganta com aquilo. E o Estado já não é mais Juscelino, e aí vêm todas as complicações que vão justamente marcar a história da edificação.

Mônica: A gente poderia dizer que em 1950, na época do lançamento, o Conjunto JK era algo visto positivamente e em 1970 ele era totalmente o contrário? Ou sempre foi essa coisa de rejeição desde o início?

Thaís: Não. Eu acho que a sua primeira ideia me parece a melhor para a gente entender a situação. Por quê? Eu pude ver principalmente pelas entrevistas que fiz, e nem foram tantas assim – mas foram entrevistas importantes – de pessoas que compraram o apartamento no edifício JK logo no início da divulgação do empreendimento, portanto logo após o lançamento da pedra fundamental. É curioso que muitas dessas pessoas eram do interior, e outras não, eram moradores de Belo Horizonte, mas moravam numa região periférica da zona central da cidade, da região de dentro da Contorno. E eu achei muito interessante como é que essas pessoas se posicionaram sobre o que foi – do ponto de vista delas – uma conquista importante que legitimava até uma intenção de habitar a urbes na sua região mais importante. Porque a praça Raul Soares, desde os anos 1930, era um espaço extremamente… Como que eu diria… Era um espaço que estimulava aquela gente da cidade que queria viver no centro, que entendia a importância da centralidade, do estar no centro, do viver no centro para acessar o que culturalmente a cidade já oferecia.

E a praça Raul Soares era novidade porque ela não era o centro Boa Viagem, que é o centro do Curral del Rei, não era o centro Praça Sete, mas era também um pedaço do centro e que se abria para algo mais moderno do que a cidade já tinha sido, pouco tempo antes. A praça Raul Soares abre o eixo da Olegário Maciel, que vai permitir o surgimento do bairro Santo Agostinho. E isso é uma nova centralidade da cidade. Não tinha nada ali antes da Praça Raul Soares. As pessoas que eu entrevistei eram da elite do interior que tinha a disponibilidade financeira para aquisição de um apartamento aqui, ou para filhos virem morar para estudar ou para os pais virem passar um fim de semana e ir ao Cine Brasil, ir ao Cine Candelária e assistir a isso ou aquilo. 

Voltando à questão que a Mônica colocou, eu acho que a coisa passa mais por isso… No primeiro momento havia um appeal enorme mesmo, em torno da construção. Era algo que ia aparecer para a cidade inteira, ia ser visível de qualquer ponto da cidade. Era algo que estava próximo ao que havia de mais importante no centro da cidade, mas, especialmente parques, espaços culturais como cinemas e teatros… E também, a administração pública, a Praça da Liberdade e suas secretarias… Tudo isso estava bastante próximo e era de fato o que constituía uma cidade moderna. A coisa tinha um appeal tremendo, porque você estaria naquele endereço, com apartamentos inusitados. Um jeito de morar que ninguém conhecia, mas ficava fascinado com aquilo, você imagina… 

Mônica: E com lojas, restaurantes e até uma lavanderia…

Thaís: Os serviços coletivos que estavam pensados… Lavanderia, restaurante, o próprio teatro, museu… O programa, digamos, urbanístico, que está contemplado ali, é fantástico! E quem comprava apartamento ali estava em busca disso. E também, de certa forma, em busca de investimento. É claro que você não pode deixar isso de lado. Imagino que tenha sido um frisson tremendo, porque todas as pessoas que entrevistei falavam dessa distinção que ter um apartamento no JK parecia trazer. 

“O Brasil estava vivendo um tempo de Bossa Nova, estava vivendo um tempo de Cinema Novo, de cultura experimentada aqui dentro, era um momento muito pujante mesmo – a gente tem trilhões de exemplos da produção cultural que mostram esse clima efervescente, animado e animador dos anos 1950”

Mônica: No seu livro você fala da estratégia de divulgar no interior, de uma imobiliária que reuniu em Teófilo Otoni a elite da cidade para vender apartamentos.

Thaís: Sim, e é interessante saber. Será interessante para quem quiser estudar o tema. Quem é que efetivamente fazia a propaganda?! O empreendimento, é claro. Mas o empreendimento era quem?! Era o estado. O estado estava ali, mas estava também o interesse privado… O arquiteto, a essas alturas, já tinha tirado o time dele de campo. Ele não quis maiores compromissos com o ‘negócio’, vamos dizer assim. O Niemeyer assinou um compromisso com a ‘Torre Eiffel’, como eu chamei no meu livro, com o monumento… Eu estou dizendo com essas palavras, estou pensando aqui agora, que eu acho que eu não falei na tese. Porque o Niemeyer pensou na assinatura do monumento, por isso que eu fiz a associação da torre inclusive, porque o Juscelino falou num discurso dele.

E pro Niemeyer, assinar uma Torre Eiffel aqui, era maravilhoso. Agora, assinar uma encrenca? ‘Estou fora, né? Estou fora’. Que foi o que ele fez, porque ele tinha uma puta responsabilidade. A essas alturas o nome dele já era um nome internacional!  Na década de 1950 para 1960 ele já tinha ganho o mundo. Era temerário, mesmo que ele deixasse o nome dele legitimando uma ação de governo que era questionada por todos os cantos. 

Então, resumindo essa questão aí… Tentando sintetizar, acho que o clima era um na década de 1950, era um clima de otimismo sim, era um clima de projeção para o futuro… Elites, a classe média, a população de maneira geral, os trabalhadores, o Brasil estava vivendo um tempo de Bossa Nova, estava vivendo um tempo de Cinema Novo, de cultura experimentada aqui dentro, era um momento muito pujante mesmo – a gente tem trilhões de exemplos da produção cultural que mostram esse clima efervescente, animado e animador dos anos 1950. Claro que as mazelas do país estavam todas aí, mas o que a mídia vendia e o que as elites teimavam em insistir é que o país estava no caminho… Eu diria, com algum cuidado, que estava no caminho de uma nação grande; tinha um modelo na cabeça que eram os americanos. Já não eram mais os franceses que nos modelaram no início do século, mas a animação era de seguir a trilha do capitalismo, fundamentalmente. É claro que você tinha as outras bandeiras todas colocadas, mas o estado geral de animação do país era assim: ‘vamos olhar para dentro e ver o que que a gente faz de diferente, o que a gente faz de importante e de bacana, vamos mostrar para o mundo e vamos trilhar o nosso caminho aí, com a nossa identidade’ – apesar dos modelos já colocados.

E se esse era o clima na década de 1950. Em 1970 tudo era diferente. Tudo era diferente porque o golpe foi tremendamente um divisor de águas nesse ambiente cultural que a gente vivia… Acho que em outros ambientes você pode ter um olhar que te diga isso ou aquilo, mas o ambiente cultural, das massas urbanas, mudou radicalmente… E depois, foi agravado com o final da década, com o AI-5.

Mônica: Voltando ao JK… Qual foi sua primeira impressão sobre o edifício?

Eu lembro que quando cheguei do interior, eu tinha 8 anos de idade, a gente ia muito para a praça Raul Soares para ver a fonte. Era programa da quinta-feira à noite, meu pai botar a gente dentro do carro e dar uma voltinha para ver a fonte luminosa! Eu olhava para aquele prédio e achava meio monstruoso, não sabia exatamente o que que era. 

Thaís: Com 15/16 anos, eu tinha uma prima que tinha se casado no interior e o sogro disponibilizou um apartamento para os dois – ela estava grávida, então deve ter saído do interior por causa disso, o casal foi mandado para cá. Era uma prima muito próxima, muito querida, morando no JK. Eu fui ao JK poucas vezes, e fui muito avisada que eu tomasse cuidado… eu falava ‘mas é a Telma que mora lá’, e meus pais:  ‘mas o lugar não convém’. Eu, particularmente, via com simpatia.

Mônica: Mas você mesma nunca teve nenhuma situação ali… Chocante ou…?

Thaís: Nunca. Nunca, nunca. Eu não entendia. Falava: ‘mas perigoso por quê? Se existe, as pessoas moram lá, tem elevador…’. Depois, confesso, que quando eu frequentei – em função da pesquisa, do trabalho… as vezes que eu fui lá, eu comecei a achar perigoso, não pelas questões sociais envolvidas, mas pela questão de você não ter um aparelhamento contrafogo. Porque aí a preocupação já era outra.

A gente ouvia falar e tinha notícias, também, pela imprensa, de crimes ou atentado contra a própria vida que aconteciam ali. Mas era coisa da cidade, da cena urbana. Eu particularmente, não vivi isso. Embora quando eu tenha começado a me interessar pelo tema, como trabalho, as primeiras vezes que eu fui ao prédio, eu me sentia de alguma maneira insegura, sabe?! Entrava sozinha, era sempre difícil para entrar… Tinha a imagem da síndica, já naquela época como alguém que oferecia algum tipo de restrição ou perigo. Eu tinha uma sensação de estar fazendo, também, algo proibido, sabe?! É curioso isso. Me parecia que eu estava mexendo num vespeiro e que eu devia tomar cuidado. Efetivamente não havia perigo nenhum, mas era um pouco o sentimento que me batia quando eu entrava lá. Confesso que sim.

Guga: Você chega a falar dessa síndica no seu trabalho. Ela está há quase quarenta anos como síndica de lá.

Thaís: Pois é, uma coisa extraordinária! Já havia, sabe, um temor pela pessoa. E eu queria acesso, por exemplo, e acabei conseguindo… Nem me lembro como. A gente fez um vídeo super amador, mas eu fiquei supercontente com o resultado e ainda guardo a cópia VHS, já um pouco desgastada.  Quem fez comigo foi a Simone Matos (produtora de filmes). Nós fomos juntas para a praça e para dentro do prédio, e fizemos um videozinho. Porque como eu ia apresentar o trabalho em Campinas e o povo não conhecia Belo Horizonte… Eu tinha fotos, mas não muitas, tinha os projetos… Não consegui aprontar aquilo de uma maneira que impactasse. Eu estava muito mais envolvida com o texto, palavras, do que com imagens. Aí falei: gente, mas pelo menos um vídeo que sobrevoe o conjunto, eu precisava fazer. Aí a Simone se dispôs e a gente fez. Ela com câmera na mão, eu fiz a narrativa… Escolhi umas músicas, umas citações e o resultado foi bacana, uma coisa de uns minutinhos, 5-7 minutos.

Guga: Vamos retomar uma ideia, que é: um projeto futurista, de vanguarda, oferecido para pessoas do interior de Minas e da provinciana capital. Esse contraste da modernidade com o tradicionalismo da mineiridade. Poderia comentar um pouquinho?

Thaís: Isso aí é interessante. E, curiosamente, uma coincidência. Estava lendo ontem um trabalho de uma amiga que é daqui de BH. Nós fomos juntas para Campinas e ela nunca mais voltou. Ela se chama Ana Lana, e é professora da USP. Hoje em dia ela é diretora da Escola de Arquitetura da USP. Ela fez um trabalho sobre a história do avô, um italiano que veio para o Brasil no início do século. Depois de uma carreira já longa na academia, ela resolveu tomar como problema a história do avô, e com isso ela perpassa a história de Belo Horizonte de uma maneira tão interessante, tão rica, e traz questões que a gente já pensou muitas vezes. Mas eu gostei, eu achei muito bom o texto dela. Até porque ela reposiciona isso – que Belo Horizonte tinha uma peculiaridade na sua história, que era exatamente a forma como os imigrantes para cá – vieram e aqui se dispersaram, não criaram colônias ou guetos ou grupos… como São Paulo e Rio, em que você tem até hoje, muito definidos. 

Ela toca nisso aí que você está me perguntando. Que é essa eterna marca, para nós que vivemos nessa cidade – sendo nascida aqui ou não – mas enfim, que nos ocupamos com ela, que atuamos nela, trabalhamos nela, vivemos a cidade. É moderna ou é antiga? É arrojada ou é tradicional? É uma cidade muito nova perto das outras que são referências importantes para nós, os outros grandes centros do Brasil, fora do Brasil… Sempre cidades com muita história, com muito peso, com trajetórias muito longas… Belo Horizonte, não. Ela é uma grande cidade de trajetória pequena! Trajetória de cento e quantos anos que ela já tem? 100… parei de contar.

Mônica: Vai fazer 124, em dezembro de 2021.

Thaís: É. Uma cidade grande, uma cidade que já foi construída, destruída, reconstruída, construída de novo, destruída de novo… Todos esses processos aí, e a gente até hoje ainda se pergunta se ela é moderna ou se ela é uma roça. E tem hora que a gente afirma com toda a convicção que ela é uma roça, e tem horas que a gente se dá com situações que a gente está vendo aqui a mesma coisa que os de Paris estão vendo lá, com o intervalo de 15 dias. Então, o quê que é ser moderno? E o quê que é ser não moderno? É ser tradicional? Não sei! Porque também a gente, seres humanos em si, a gente é nesse caso como as cidades, se vale a comparação – A gente também é moderno e tradicional. As partes da gente brigam o tempo todo. E eu acho que a cidade é assim também, você tem todo um discurso da tradição – que tem sustentação na prática, não é? – mas a tradição… Por quê? É tradição de onde? Veio de onde essa tradição, e ela está depositada onde? Nas pessoas, na cidade? A cidade foi desrespeitada continuamente ao longo desse século de vida que ela tem.

Ela foi desrespeitada. Ela se fez capital, toda novidade em relação à antiga capital, Ouro Preto, mas depois de 30 anos o povo estava se lamentando que isso tudo estava velho, quer dizer, como é que pode? Meio louco isso. Em 30 anos você envelhece uma cidade a ponto de precisar substituir prédios por coisas mais novas. Essa marca é dolorosa, ela criou um ambiente na cidade, que é de falta de amor-próprio, muitas vezes. Falta de amor-próprio. Daí o motivo pelo qual nós sempre olhamos para fora. Rio, São Paulo… Tá, são cidades bárbaras, que têm suas histórias. O grande problema da cidade é que Belo Horizonte – pensando cidade, pensando um espaço urbano onde vivem milhares de pessoas dividindo o mesmo espaço, garantindo sobrevivência – Belo Horizonte é uma cidade limitada pela sua condição econômica. Belo Horizonte é uma cidade pobre, eu acho que é isso. 


Comprou-se terra para construir a cidade. O nosso território é muito pequeno, a cidade acabou, ela não pode crescer mais; isso é uma dificuldade. Belo Horizonte não tem mais território para onde crescer. Ela foi cercada pelas cidades satélites, é uma grande metrópole e não tem mais para onde crescer. 

“O conjunto JK, mais do que patrimônio, é um elemento tão icônico do centro da cidade, e tem áreas que foram pensadas para uma coisa e que não foram utilizadas para nenhuma… Que tinham que se transformar em áreas de uso coletivo, tinham que se abrir para a cidade”

Mônica: Como é que você vê o JK hoje? 

Thaís: Eu já tive notícias do movimento no JK, a Michele Arroyo, ex-presidente do IEPHA, me falou do coletivo Viva JK. E eu sempre me coloquei às ordens e disposta a contribuir, porque acho efetivamente que o conjunto JK é um patrimônio importantíssimo da cidade. E que mais do que do que patrimônio, é um elemento tão icônico do centro da cidade, e tem áreas que foram pensadas para uma coisa e que não foram utilizadas para nenhuma… Que tinham que se transformar em áreas de uso coletivo, tinham que se abrir para a cidade, que isso pode dar vida nova pro conjunto, toda aquela área da Timbiras… Aquilo ali é uma imensidão, e uso zero… Quer dizer, por que que o conjunto, os moradores ali, não propõem algo que permita a interação para que a cidade possa conhecer? Tem 30 e poucos anos que eu fiz esse trabalho; toda vez que eu vou falar dele eu vejo olhos interessados, e eu percebo escuta para o que eu vou falar. Eu falo com o mesmo ânimo, porque eu acho um tema apaixonante de fato, e me apaixonou fazer esse trabalho. Eu fiquei tão animada de saber que hoje tem gente lá, pensando e morando lá, e pensando como fazer para ‘elevar’, não sei se elevar, mas…

Mônica: Ressignificar.

Thaís: Ressignificar, promover a dignidade que o conjunto merece. Hoje eu tenho vários conhecidos morando no JK – e tudo gente de cabeça boa. Tudo gente que pensa nessa ressignificação e que quer atuar para ela, né?

Mônica: Nós vamos conseguir.

Thaís: Eu acho que sim, sabe. Eu acho que é algo que só será benéfico pra comunidade. Tirando os eternos desagradados com mudanças – que esses existem em qualquer lugar. Eu fiquei superanimada por vocês quererem entrevista para falar do meu livro. Sempre tive esse sentimento de que eu fiz um trabalho importante, e eu queria que esse trabalho pudesse alimentar movimentos no JK, que fosse de valorização do patrimônio…

Mônica: Tá alimentando. O site do nosso do coletivo, por exemplo… 

Thaís: Mas eu acho que a comunidade dos dois edifícios pode se beneficiar e a cidade, sem dúvida nenhuma. E eu vi a vista do alto do prédio, quando fizemos o vídeo, 360 graus de Belo Horizonte… é linda!

Mônica: E lá poderia ser mais um espaço para uso público… Um mirante, que teria uma vista parecida com a do Edifício Itália, em São Paulo.

Thaís: Em Istambul, os espaços dos tetos dos edifícios são públicos. Públicos no sentido de serem “públicos privados”. São restaurantes, são bares que as pessoas podem frequentar, circular… Se você tem como pagar o serviço oferecido lá em cima – obvio que você tem sempre esse condicionante. Mas ter um aproveitamento daquele espaço… Seria maravilhoso!

Neste momento, ao final da entrevista, Thaís convidou Guga e Mônica para experimentar o café cultivado na fazenda dela, em Três Pontas. Com o pôr do sol, o JK estava em contraluz na janela da sala.

Ficou curioso para ler a Torre Kubitschek? Pode comprar sua cópia de papel aqui ou então ler a versão em PDF gentilmente cedida por Thaís

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