• 11.12.21
  • 24 min
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Flávio Carsalade: “O Edifício JK foi um exercício de Futuro”

Arquiteto e urbanista que coordenou o dossiê de tombamento da Pampulha defende que o Conjunto Governador Kubitschek já é, antes da oficialização, um patrimônio de BH 

Homem vestindo terno e chapéu coco, de costas, segurando um guarda-chuva, olha para o Edifício JK ao fundo. Sobre o guarda-chuva, várias borboletas. Ao fundo, se aproximando do JK, vários discos-voadores

“Da mesma maneira que não tínhamos dúvidas de que a Pampulha era um patrimônio mundial, não há dúvidas de que o Conjunto Governador Kubitschek é um patrimônio de Belo Horizonte”.

É com essa convicção e ênfase que o arquiteto e urbanista Flávio Carsalade fala da importância do Edifício JK para a história da capital mineira.

Vale dizer: a comparação a que ele recorre, traçando paralelos entre o prédio e o conjunto arquitetônico, poucos poderiam fazer com tanta propriedade. Professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais desde 1982, onde foi diretor (2008-2012) e vice-diretor (1988-1991), Carsalade coordenou, em 2015, o dossiê de tombamento da Pampulha enviado à Unesco.

Na conversa com o Viva JK, realizada por videochamada, o estudioso mostrou-se um entusiasta de projetos capazes de recuperar os valores vocacionados ao prédio em seu projeto original. Apesar de eventuais resistências,“acho que isso vai acabar acontecendo uma hora ou outra”, avalia, fazendo referência à iniciativa do Mirante Urbano JK (MU.JK), idealizado por moradores e membros do VivaJK. O projeto quer fazer do espaço da esplanada com acesso pela rua dos Timbiras um espaço de encontro.

“Aproveito a nossa conversa para manifestar minha adesão ao coletivo. Eu acho que o Edifício JK é um grande potencial que Belo Horizonte tem. E esse grande potencial, por incrível que pareça, está exatamente em voltar a ser aquilo que ele nunca foi, mas que foi projetado para ser: um prédio em interação com a cidade. Quando conseguir cumprir essa vocação, o JK vai finalmente dizer a que veio e justificar sua existência com ainda mais força”, diz.

Ex-presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (1999-2002) e do Instituto de Arquitetos do Brasil/ Departamento Minas Gerais (1995-1998), além de ter sido Secretário Municipal de Administração Urbana Regional Pampulha da Prefeitura de Belo Horizonte (2004-2007), Carsalade costurou memórias, reflexões e pesquisa em suas respostas que, via de regra, emprestam a devida complexidade a cada temática abordada na entrevista que você confere na íntegra.

Do ponto de vista do impacto no entorno e do programa apresentado, o que projeto original do Conjunto Governador Kubitschek significou para a Belo Horizonte dos anos 50?

O Juscelino Kubitschek sempre foi muito moderno, pensava à frente de seu tempo. Então, o que ele pensa para o prédio – assim como agiu quando pensou a Pampulha – dizia justamente sobre o futuro. Isso significa que o Conjunto JK não parecia se adequar exatamente à realidade que Belo Horizonte vivia naquele momento, sendo caracterizado como uma coisa um pouco de vanguarda, uma espécie de exercício de futuro. 

O que se estava criando ali era quase um bairro vertical, inclusive com comércio e outras facilidades. E Belo Horizonte não tinha densidade populacional e nem falta de espaço para que se criasse uma solução como aquela – é até curioso falar solução, porque não havia um problema a ser solucionado. O que havia ali era quase que uma proposição de futuro, uma prospecção, um teste de algo que poderia ser interessante para o futuro, mas não era uma necessidade para a época. 

E a população, claro, também não comprou muito a ideia porque, para ela, era difícil compreender a necessidade de uma obra daquele porte. Além disso, no primeiro momento, a novidade gerou uma certa estranheza. Afinal, quem seria o morador típico daquele lugar? A quem se destinaria aquilo? São questionamentos que vieram junto daquela coisa da desconfiança do mineiro, que se perguntava o que aconteceria em um lugar com tanta gente morando junto. 

Sensivelmente, era uma ideia muito avançada, e isso causava estranheza, porque era um projeto que soava exagerado. Inclusive, acho que essa foi uma das razões pela qual o prédio demorou tanto para ficar pronto: tratava-se de uma experiência arquitetônica e urbanística muito diferente. 

Em que momento da história e da trajetória de Oscar Niemeyer o Edifício JK aparece?

Os anos 50 são o auge do Oscar Niemeyer. Ele já tinha feito um sucesso muito grande com a Pampulha e estava sendo celebradíssimo. Pouco tempo depois, ele iria projetar Brasília. Portanto, era o seu apogeu. E, naquele momento, havia um ideal do arquiteto comprometido com a modernidade e com as experimentações que a arquitetura vinha fazendo – quando experiências de grandes edifícios habitacionais estavam acontecendo pelo mundo afora, inclusive na América Latina. 

Oscar Niemeyer não poderia ficar de fora desse tipo de experiência. No próprio Rio de Janeiro existiam diversas experiências de habitação social, para a camada de população de baixa renda, que estavam sendo feitas. Então, o Conjunto JK se insere um pouco nesse momento da arquitetura, que era um momento de experimentações de vanguarda. E o Oscar Niemeyer estava envolvido nisso até como uma liderança intelectual.

E como o prédio se insere no contexto do modernismo brasileiro?

O Juscelino Kubitschek, de certa maneira, é fruto da Era Vargas. Isso significa que, no período em que ele se formava, havia uma grande discussão sobre o nacionalismo brasileiro, um debate que foi de interesse do próprio Getúlio Vargas, que buscava pensar o que faz do Brasil uma nação.

Acontece que a discussão sobre o que significa falar em brasilidade foi encampada pelos expoentes modernistas.O Mário de Andrade, que era um poeta vanguardista, não deixou de estar preocupado com o nacionalismo brasileiro. E os próprios arquitetos modernistas refletiram muito sobre esse tema. O Lúcio Costa é um exemplo interessante. Ele começa a carreira pensando em um nacionalismo ligado ao colonial e, por isso, nesse primeiro momento, ele fazia projetos neocoloniais. Mas, à medida que tomou contato com as vanguardas europeias, ele começou a entender a importância disso. 

E Kubitschek bebeu de toda essa discussão. Ele buscou criar alguma coisa identificada como brasileira, e ele achava que essa coisa estava na modernidade do país, o que estava sintonizado com a forma dele de pensar, sempre conectada com o futuro, em pensar a cidade do futuro, o país do futuro. O caso da Pampulha, construída quando ele foi prefeito de Belo Horizonte, é emblemático. 

A região da Pampulha, incluindo a lagoa, tinha sido criada para o abastecimento de água e para ser um cinturão verde de sítios que teriam como função gerar comida para Belo Horizonte. Mas Kubitschek pensa que a Pampulha é bonito demais para ser só isso. E, então, ele vai pensar no que a cidade moderna quer e vai criando um projeto vibrante, com espaços para esportes náuticos, para shows e grandes eventos. Essa, definitivamente, não era a realidade daquela Belo Horizonte. 

Esse comprometimento dele com o moderno faz com que ele se esforce em trazer exposições de arte para a capital. A primeira mostra de arte moderna de Belo Horizonte, realizada em 1944, foi promovida graças a Juscelino Kubitschek. Ele também trouxe Alberto da Veiga Guignard para cá. São provas de que estamos falando de um político que tinha esse compromisso com o moderno.

Quando pensou no projeto da Pampulha, o JK queria que lá operasse um cassino. E ele chegou a fazer um concurso de arquitetura que definiria o autor do projeto. O vencedor do concurso foi um arquiteto que fez um projeto meio neorromano, uma coisa muito parecida com o Palácio da Quitandinha, de Petrópolis. Mas isso não agradou Kubitschek, que não queria fazer ali alguma coisa que remetesse ao passado. A partir daí, ele começa a pesquisar e perguntar para amigos sobre algum arquiteto com um olhar mais para o futuro e com um traço mais vigoroso. Foi quando ele conheceu, por indicação de outros intelectuais, o Oscar Niemeyer.

Da mesma maneira que não tínhamos dúvidas de que a Pampulha era um patrimônio mundial, não há dúvidas de que o Conjunto Governador Kubitschek é um patrimônio de Belo Horizonte

Falando em patrimônio, acredita que já se estabeleceu um entendimento público de que estilos arquitetônicos mais recentes, como o modernismo, são também um patrimônio?

A compreensão da população sobre patrimônio tem mudado muito rapidamente e a questão do patrimônio e da preservação patrimonial têm se acelerado muito nos últimos anos – eu ia falar décadas, mas acho que está havendo uma aceleração tão grande que a escala de medida deixa de ser década, estamos falando em anos mesmo. 

A Constituição Federal de 1988 trouxe um entendimento mais diversificado e complexo do que seria o patrimônio. Antes, e isso era algo que estava no imaginário, era preciso ter uma distância temporal para que se pudesse dizer o que é um bem patrimonial. Para o leigo, patrimônio era algo que pertencia claramente ao passado, algo que estava chancelado por esse passado.

Pondero que essa visão era uma característica mais da população do que dos técnicos, como nos mostra o exemplo da Igreja São Francisco de Assis, na Pampulha, que foi tombada antes de ser inaugurada, porque, com aquela querela entre a arquidiocese e o Juscelino Kubitschek, a obra acabou ficando fechada e se deteriorando, sem ser utilizada. E esse imbróglio levou à curiosa situação da igreja ser tombada pelo Iphan antes de ela ser inaugurada.

Agora, contudo, notamos que há um interesse de preservação também do patrimônio moderno. O que podemos observar é que o interesse de preservação surge quando as coisas ganham significado para a população, quando a população começa a se identificar com aquele bem ou vê que aquilo tem significado.

No caso do Edifício JK, sabemos que o prédio foi projetado em 1952 para ser um marco geográfico e cultural em Belo Horizonte. Setenta anos depois, o lugar ainda não parece ser um elemento de identificação dos belo-horizontinos. O que deu errado?

Para falar disso, vou começar falando de um outro caso, que é emblemático: o da Pampulha. 

Desde logo, toda a população percebeu que aquilo tinha muito valor e abraçou a Pampulha como patrimônio – tombado ou não, porque não estou nem falando da oficialização do tombamento. A população adotou a Pampulha para si, fazendo dela um patrimônio independente de ser tombado ou não. E isso aconteceu por haver a percepção de que aquilo ali tinha significado.

Mais tarde, esse fenômeno se repetiu em relação a outros projetos também do Oscar Niemeyer, que passaram a ser vistos como obras que tinham um destaque especial, que tinham uma vocação especial. E isso que justificaria a preservação. 

Por exemplo, o edifício Niemeyer, na Praça da Liberdade, se agregou ao imaginário da população logo que foi construído, de forma que, tombado ou não, o prédio já era considerado patrimônio. 

Agora, o Condomínio JK, talvez por causa dessa demora dele de ser construído, e até um certo estigma que existiu em torno dele, sobre quem moraria naquele edifício, causou uma série de distorções que prejudicou a incorporação do lugar no imaginário da cidade. 

Contudo, insisto que desde da Constituição Federal de 1988 – e de casos como o da Pampulha – tem havido um movimento de compreensão da conservação não apenas e simplesmente como algo que diz do passado estético.

Essa mudança de percepção popular também se insere no meio institucional. No passado, até mesmo o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) negligenciou o patrimônio eclético. Até o fim dos anos 80, o ecletismo não era considerado patrimônio. 

O que houve, portanto, foi uma mudança de chave: começou-se a entender que a preservação da memória era um valor sociocultural importante. Com isso, o patrimônio passou a ser visto a partir de outros parâmetros, além dos estéticos ou históricos. Logo, as pessoas e instituições foram passando a identificar o modernismo como um momento importante de apogeu da cultura brasileira. 

A obra de Oscar Niemeyer, de Affonso Eduardo Reidy, considerado um dos pioneiros na introdução da arquitetura moderna no país, e de outros arquitetos modernistas trouxeram muito orgulho à sociedade, que, por isso, passou a dar significado especial a essas obras. E esse ato de atribuir significado a um bem é o primeiro passo para que ele seja reconhecido e, depois, possa ser tombado.

Aproveitando que já começamos a falar sobre a Pampulha, o senhor participou do processo que levou esse espaço a ser reconhecido como patrimônio da humanidade. Quais foram os desafios enfrentados para que o Conjunto Moderno da Pampulha alcançasse esse título?

A Pampulha já era potencialmente um patrimônio mundial muito antes do lançamento da candidatura, porque a historiografia internacional da arquitetura reconhece no lugar uma corrente do modernismo absolutamente original e diferente do que se fazia na Europa, nos Estados Unidos e mesmo na América Latina. 

Oscar Niemeyer ganhou uma projeção muito grande a partir desse empreendimento. Além disso, era sensível que o trabalho de paisagismo de Roberto Burle Marx era absolutamente novo e distinto do que se fazia no resto do mundo. Não se tratava do paisagismo francês, de disciplinamento da natureza, tampouco se tratava da escola inglesa e seus jardins pitorescos. 

Então, a Pampulha ser reconhecida como patrimônio já era uma coisa esperada não só pela comunidade brasileira, mineira e belo-horizontina, mas também pela comunidade internacional. 

Lembro-me de ter recebido aqui a visita de vários arquitetos do mundo inteiro que vinham visitar a Pampulha. Uma memória especialmente marcante foi a do presidente do Instituto de Patrimônio Português. Ele dizia que, nos anos 50, quem quisesse ser um bom arquiteto tinha que visitar a Pampulha, que era uma visita obrigatória para a formação. 

É importante explicar como se dá o procedimento para o reconhecimento como patrimônio mundial. Para começar, o país indica um patrimônio que vai ser examinado pela Unesco. Nem esse passo a gente conseguia dar, porque o Iphan, órgão a que caberia essa indicação, sempre relutava, ficava com medo de colocar a Pampulha e ela não conseguir o título por causa do estado físico dos prédios e da poluição da lagoa.

Então, a Pampulha teve uma requalificação muito grande a partir de 2003, quando houve toda aquela obra de recuperação da Pampulha e a criação do Parque Ecológico. Em 2005 a Igreja da Pampulha passou por uma restauração muito profunda e rigorosa – talvez a restauração mais complexa que aquela edificação já passou. Também a Casa do Baile ganhou uma identidade com a implantação do Centro de Referência em Arquitetura e Urbanismo. O único empecilho que tínhamos era o Iate Clube, que, desde que foi privatizado, era sempre um problema. Além disso, o Museu de Arte da Pampulha também impunha alguns desafios, mas o lugar tinha passado por algumas restaurações que amenizavam esses problemas.

De qualquer maneira, a gente ainda lidava com aquela história de que o momento para que a Pampulha fosse indicada ainda não havia chegado. Esse impasse iria se prolongar indefinidamente, mas a Prefeitura de Belo Horizonte decidiu que, apesar dos pesares, iria colocar a candidatura para frente entendendo que, embora a almejada condição super ideal não aconteceria, a Pampulha estava em uma condição digna de se apresentar como patrimônio mundial. Àquela altura, as principais questões eram o Iate Clube e a própria lagoa, que já tinha sofrido uma grande degradação entre os anos de 2005 e 2006, começando a ter, de novo, um carreamento de sedimentos sólidos.

A solução foi a seguinte: apresentamos a candidatura não da Lagoa da Pampulha, mas do Conjunto Moderno da Pampulha, que é o trecho da lagoa onde estão os edifícios mais nobres. Deixamos o resto da lagoa como área de amortecimento a ser tratada em outro momento. E isso criou condições para que o Conjunto fosse apresentado como patrimônio da humanidade.

Na sequência, recebemos os consultores e todos que vieram aqui concordaram e forneceram subsídios que possibilitaram que a candidatura fosse bem-sucedida.

Agora, voltando ao Edifício JK, acredita que as  várias descaracterizações que o prédio sofreu ao longo dos anos podem ser um obstáculo para seu tombamento? Por outro lado, essa demora para se concluir o processo de tombamento pode ampliar o risco de que mais alterações sejam feitas?

Da mesma maneira que não tínhamos dúvidas de que a Pampulha era um patrimônio mundial, não há dúvidas de que o Conjunto Governador Kubitschek é um patrimônio de Belo Horizonte. Ainda mais nesse momento em que o legado de Oscar Niemeyer tem sido tombado por atacado no Brasil inteiro. 

No caso do JK, sabemos que esse tombamento deveria ter sido concluído antes mesmo da morte de Niemeyer. O que impediu que isto acontecesse, em um primeiro instante, não foram nem mesmo questões estéticas ou de conservação. É que, anos atrás, existia uma má vontade de se tombar grandes edifícios verticais por conta da perda de receita, uma vez que o tombamento municipal garante isenção de IPTU, no caso de o espaço estar em boas condições de conservação. Imagine, portanto, o que significaria, em termos de perda de receita, tombar grandes prédios verticais em BH. Isso motivava, mesmo que de forma velada, um certo pé no freio. 

Com o tempo, isso foi se diluindo e deixou de ser uma grande preocupação. Mas, então, passamos a lidar com outro entrave, que é justamente a questão das descaracterizações, que começaram a aparecer com mais força tanto no térreo como em relação ao estado de conservação da fachada.

De certa maneira, eu penso que o próprio patrimônio, antes de fazer o tombamento, use esse mecanismo como estratégia de negociação com o próprio condomínio, seja para frear ou para reverter algumas dessas descaracterizações, uma contrapartida que seria justa à medida que você vai dar isenção de IPTU para todo mundo que mora ali.

Por outro lado, é também verdade que o patrimônio já entende que o prédio está protegido porque o edifício já está em processo de tombamento. Talvez, o que esteja retardando são essas negociações para que se façam os investimentos necessários. Talvez seja isso o que leva a esse processo, que parece indefinido, mas que talvez seja útil, de certa maneira, para garantir a melhor forma de preservar o edifício.

Quem ganha e quem perde com o tombamento do Conjunto Governador Kubitschek? 

No caso específico do JK não se perde nada com o tombamento, só se ganha.

Vamos lá: podemos dizer que há possibilidade de perda se estamos falando em tombar uma casa que não pode ser demolida em um terreno que tem grande potencial construtivo. Nesse caso, o proprietário perderia porque não poderia se aproveitar de todo esse potencial. Por isso foram criados alguns instrumentos, como a transferência do direito de construir. Mas esta não é a situação do JK. 

O prédio está pronto, ele não vai crescer e sabemos que ele esgotou e ultrapassou o potencial construtivo condizente ao terreno que ele ocupa. Hoje, se o edifício fosse demolido e reconstruído, teríamos um prédio muitíssimo menor em seu lugar.

O que pode haver é um receio baseado em um mal-entendido. As pessoas podem pensar que o patrimônio vai exercer tutela sobre o prédio impedindo mudanças. Mas eu não sei se isto seria uma perda. Afinal, o prédio é um prédio muito pronto. Você pode até discordar – e há correntes, por exemplo, que questionam se trocar a esquadria de ferro por uma de alumínio seria um bom procedimento em termos de técnicas de restauração – mas isso é uma questão de discussão técnica. Não é uma questão de cerceamento.

Vejo que a questão está mais calcada nesse medo de se perder a liberdade de fazer o que quiser e bem entender com o imóvel. Esta postura denota uma incompreensão da Constituição Federal de 1988, que relativiza a propriedade privada em relação à função social. Então, esse medo arraigado vai apontar para uma noção anacrônica de como a sociedade compreende a propriedade privada. Eu diria que, se em algum momento esse dispositivo constitucional recebeu o título de comunista ou socialista, hoje não é bem assim. 

O fato de se relativizar a propriedade privada em relação ao benefício social maior é algo que me parece absolutamente natural. O que há é um resquício dessa sociedade que pensa que, sendo dono, o sujeito pode fazer o que ele quiser sem ter que prestar satisfação para ninguém. Mas isto não existe, não é assim que o mundo contemporâneo funciona.

Um dos objetivos do Viva JK é atrair a atenção da comunidade para os espaços públicos e coletivos do edifício. Sabemos que, segundo o projeto original, museu, teatro, cinema e terminal turístico estariam integrados ao prédio. Muitos dos espaços que seriam destinados a usos comuns estão, hoje, abandonados ou subutilizados. O que a cidade ganharia se estes espaços finalmente tivessem a destinação para que foram projetados? 

Antes de mais nada, é importante que a gente entenda que não existe tombamento de uso. Ou seja, não se pode determinar como um espaço será utilizado porque há outras variáveis em jogo, como o vigor econômico daquele mercado. Por exemplo, você não pode pegar um cinema de 500 lugares e determinar que ele será sempre um cinema em um momento em que ninguém mais consegue operar uma de 500 lugares mais. A ideia, portanto, é que o edifício se adapte às mudanças sociais. 

Então, não podemos acreditar que o tombamento induziria a uma eventual retomada de toda essa beleza da concepção inicial – porque é bela essa concepção do prédio interagindo com a cidade, algo que nos norteia na arquitetura contemporânea. Sabemos, aliás, que quanto mais um edifício interage com a cidade maior será o seu valor do ponto de vista técnico. 

Por outro lado, quando você recupera os valores vocacionados ao prédio – porque, ao fazer o tombamento, você mostra quais são os valores pensados para aquela proposição -, abre-se pressão para esse tipo de coisa. 

A questão então volta para aquela questão anterior, sobre essas manifestações de um medo anacrônico que ainda presenciamos em nossa sociedade. Isto é, pode ser que muitos moradores ou a própria administração do condomínio não tenham interesse em uma abertura maior do prédio.

Podemos observar que, para além do receio quanto à relativização da propriedade privada em relação ao benefício social, na sociedade contemporânea a questão da segurança aparece como um argumento muito forte, que pode levar a decisões irracionais. Por causa desse medo, muitos fecham os olhos para o fato de que uma maior abertura pode conferir mais segurança a um lugar do que fechá-lo. Os muros opacos e altos ao redor de uma casa são um clássico desse pensamento, que está ultrapassado. Nesse modelo antigo, um invasor, que entre no local, se sentirá visualmente protegido pelo muro e poderá agir de forma mais despreocupada. Ou seja, não é necessariamente ruim ou necessariamente inseguro abrir o prédio. O que a gente vê, inclusive, é que quanto mais movimento se tem mais seguro se torna o lugar. 

Pode ser que as pessoas que administram o condomínio ou, eventualmente, alguns moradores e proprietários pensem que, ao abrir espaços do prédio para o acesso da comunidade, a tranquilidade do lugar estará ameaçada. E este tipo de pensamento pode mobilizar o medo do tombamento, do qual já falamos aqui. Então é bom frisar que, ao tombar o prédio, não é possível determinar como um espaço será utilizado. Mas, certamente a própria valorização do prédio em seu projeto original vai evidenciar esses aspectos que estão no fundamento dele. Acho que isso vai acabar acontecendo uma hora ou outra. E tem que acontecer, porque o prédio foi feito para isso. Sem dúvida, será muito benéfico que nossas cidades passem a incorporar projetos assim.

Por fim, acredita que Belo Horizonte é uma cidade que assimilou bem a vocação modernista para a qual foi projetada?

Não tenho dúvida de que Belo Horizonte nasceu para ser moderna. Essa cidade surgiu em oposição à antiga capital do Estado, o município de Ouro Preto, mais associada ao passado. Já BH, quando foi construída, ganhou prédios que são autênticos representantes do ecletismo, que era um grito de modernidade de então. Logo depois, vieram o Deco e, logo depois, o Moderno da Pampulha. 

Essa vocação da modernidade está introjetada no imaginário da população que aqui se instalou. Uma população que, inclusive, se opunha a reproduzir aqui aquilo que era entendido como “da roça”. Muitos moradores chegavam a pavimentar seus quintais, como se cumprissem um rito para se desligar das tradições do lugar de onde vinham. Esse gesto, no entanto, não enterrava a mentalidade interiorana dessas pessoas, que traziam consigo muitos valores do interior. É um paradoxo engraçado: de um lado, BH tem essa coisa de ser moderna, de outro, tem uma sociedade que é muito provinciana. 

Mesmo assim, apesar dessa aparente oposição, a ideia de que somos modernos, de que somos uma cidade aberta para a modernidade, de que somos uma cidade pujante sempre foi um motor e um norte para Belo Horizonte. Portanto, não acho que BH conviva mal com isso. Talvez seja justamente o contrário: pode ser que BH conviva mal com o excesso desse ímpeto de modernidade, porque, talvez, seja essa vocação modernista que tenha causado tanta destruição de prédios belíssimos, como se fosse necessário substituir o que é velho o tempo todo.

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