Ator, que fez das caminhadas e da interação com BH um hábito, encontrou no JK seu porto seguro ideal
“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas”.
É assim, com explícita reverência, que o cronista João do Rio (1881-1921) inicia o célebre “A Alma Encantadora das Ruas”. Na obra, publicada pela primeira vez em 1910, o carioca se identifica como um flâneur, e explica: “Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir”, escreve. Afinal, para ele, “ora, a rua é um fator de vida nas cidades, a rua tem alma!”. Mais adiante, citando o escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850), o autor é categórico ao afirmar e reafirmar que as vias urbanas nos dão impressões humanas – e, talvez por isso, nos despertem amor.
Há algo de João do Rio na forma como o ator Paulo André experimenta Belo Horizonte. “Eu sempre fui uma pessoa de andar muito e sempre adorei caminhar pelo centro da cidade”, estabelece, descortinando memórias de quando começou a visitar a capital. “Eu sou de Itabirito (na Região Metropolitana de BH) e, com uns 12 anos, eu usei aparelho nos dentes. Então, eu tinha que vir (para a capital). Todo mês eu vinha para apertar, para dar manutenção, e minha mãe vinha comigo. Até que chegou um dia que falei para ela que eu podia fazer isso sozinho, que eu sabia fazer o trajeto: descer na rodoviária e ir no dentista, no edifício Codó, na avenida Amazonas. E, como era outra época, ela deixou e assim comecei a fazer. Com 13, eu andava esse centro todinho, e já gostava disso”, relembra.
Pouco tempo depois, já adaptado à cidade, Paulo André mudou-se para BH. “Vim para estudar, para fazer o segundo grau. O que só fortaleceu essa relação que eu já vinha construindo”, sinaliza. Já instalado na cidade, ele ingressaria no teatro, embora com alguma dúvida. “Comecei aos 20 anos, mas muito inseguro, porque me sentia velho (para começar carreira nas artes cênicas)”, reconhece. Felizmente, o receio não significou uma barreira. Em 1994, começou a trabalhar com o Grupo Galpão. Desde então, é membro da companhia, a mais tradicional do teatro em Minas Gerais.
As andanças
As itinerâncias do ator pela urbe o trouxeram e se repetiram no Conjunto Governador Kubitschek, o JK. Com o marido, o arquiteto Marcelo Alvarenga, ele estabeleceu-se no prédio há exatos dez anos. “A gente se mudou em agosto de 2011, mas, na verdade, a relação começa antes, porque reformamos o apartamento. Aliás, temos uma história muito louca com esse lugar, de muitas andanças e mudanças aqui dentro”, comenta, citando que, ao todo, o casal comprou e reformou quatro apartamentos no edifício.
Antes, Paulo e Marcelo viviam no bairro Santo Antônio, na região Centro-Sul. “Era um lugar silencioso de trânsito, mas entrescutávamos muito os vizinhos. Eu tinha que ficar com a cortina sempre cerrada, porque a janela deles ficava do lado da nossa. E o olhar do vizinho, além de ouvi-lo, me incomodava demais”, diz. Hoje, esse não é mais um problema. “Ao mudar para cá, tem esse barulho do trânsito que, no início, eu estranhei. Mas eu não escuto as pessoas que moram ao lado, ou em cima. É como se eu morasse sozinho, isolado. Eu não ouço nada. Às vezes, eu saio aqui de casa e vejo que o (videoartista) Paulo Raic, que é meu vizinho, está com a música no talo. Fico surpreso, porque só quando estou no corredor que eu ouço. Não ouço nada dentro de casa. Isso dá uma sensação boa de privacidade aqui, sabe?”, compara.
Um detalhe curioso: durante toda a conversa com o VivaJK, realizada por videochamada e que durou cerca de uma hora, ressoava ao fundo um alarme veicular.
Outro atrativo irresistível aos olhos do ator foi a diversidade que aqui percebeu. “Acho uma delícia o elevador do JK. Quando desço, desço sempre de escada, porque descer é sempre tranquilo e, daí, faço uma caminhada. Para voltar, quando estou carregando compras, eu pego o elevador. O que mais gosto é que aquilo é uma caixinha de surpresas. É sempre tão diverso, com tantas figuras…”, reflete.
“E eu acho ótimo esse lugar que tem velhos. Igual Copacabana (bairro situado na zona Sul do Rio de Janeiro). Aqui é meio Copacabana. Um lugar cheio de velhos e que convive com diversidade, sabe? Isso me parece tão prazeroso, é algo que me atrai. Me sinto bem estando cercado de um monte de gente diferente. O que me incomoda, ao contrário, é estar em um ambiente em que há um padrão de ocupação. Sabe quando você senta em um bar e vê só frequentadores que usam Lacoste? Dá vontade de sumir”, declara.
Por fim, mas não menos importante, a sensação de amplitude é outro elemento que Paulo André celebra no JK. “Aqui, desse lado (as janelas do apartamento ficam de frente à rua dos Timbiras), tem a vista linda da Serra do Curral. Isso, para mim, foi libertador. Eu morei, por muitos anos, em um apartamento no (bairro) Santa Tereza (na região Leste) que tinha um terraço com uma vista deslumbrante. Lá, como aqui, eu tinha essa sensação de amplitude. Mas, depois, no (apartamento) do Santo Antônio… Eu sentia falta disso”, pontua.
As quatro obras
Diga-se, a vista que tanto lhe agrada só foi possível por conta das itinerâncias do ator – também – pelo prédio. “O primeiro apartamento que compramos era no sétimo andar, no bloco A. O imóvel era de um cara que ficou devendo a Caixa (Econômica Federal) e não estava conseguindo pagar. A gente honrou a dívida e comprou o apartamento da mão dele. Em seguida, começamos a reformar”, relembra.
“Daí, em meio às obras – e, nessa época, já éramos doidos para morar mais para cima – apareceu outro apartamento que estava para ser leiloado, também pela Caixa. E esse era no andar 19. Claro que nossos olhos brilharam, mas o dinheiro que a gente tinha já tinha destino: era para comprar uma casa lá no Santa Tereza”, rememora.
Paulo André segue reconstituindo cada passo dessa jornada. “De início, decidimos acabar a reforma do que já havíamos adquirido e ficar com ele. Só que, passou um tempo, eu entrei de novo no site e o apartamento continuava lá, sem ter tido nenhum lance. Quando vimos que estava saindo pelo valor mínimo, percebemos que era mesmo uma oportunidade – e aí a casinha no Santê dançou”, ri.
“A gente acabou a reforma do apartamento do sétimo, vendemos ele, e compramos esse do (andar) 19. Mudamos para cá em agosto de 2011”, expõe. Logo, mais uma reviravolta surpreenderia o casal.
“Nesse meio tempo, a vizinha que a gente tinha aqui ao lado começou a brigar com o vizinho de cima. Ela cismou que o vizinho estava jogando veneno nela e, com isso, começou uma guerra. Ficamos no meio desse fogo cruzado. Até que um dia a situação ficou insuportável. Foi quando nos comprometemos a comprar o apartamento dela, para ela poder realizar o anseio de se mudar daqui. Para essa senhora, não adiantou muita coisa. Soube que ela se mudou, mas levou a paranoia consigo e voltou a cismar que tinha um vizinho jogando veneno nela”, informa, mencionando que eles, Paulo e Marcelo, chegaram a fazer um empréstimo bancário para adquirir o imóvel – e voltar a ter paz. “Desde 2016, é nele que nós moramos”, complementa.
“Por fim, o Marcelo vendeu o apartamento que ele tinha no Santo Antônio, onde a gente morou, e comprou um duplex aqui, que também está alugado”. Paulo garante que esta foi a última obra deles no prédio. “Eu juro por Deus, tantas reformas me fizeram perder as forças”, reconhece.
A urbanidade
Retomando memórias de quando chegou pela primeira vez ao prédio, o ator recorda mais atributos que mais lhe pareceram sedutores. “Quando a gente estava buscando um lugar para viver, viemos conhecer o apartamento de uma amiga e, depois, voltamos com um corretor, que nos mostrou várias outras plantas. Sem dúvida, a qualidade do prédio é que nos fez vislumbrar a possibilidade de morar aqui. Essas paredes enormes, todas de vidro, essa qualidade de luz natural que tem aqui… E, além disso, a localização é tudo”, estabelece.
Para alguém que desde a adolescência se relaciona com o centro de BH, não havia melhor porto seguro. “Eu gosto muito dessa redondeza. Eu gostava muito de ir ao Mercado Central, mas, com a pandemia, não tenho ido. Antes, era um destino para tomar café, para comprar verdura e para buscar cachaça – porque sou um cachaceiro inveterado”, relata com um quê de nostálgico. “E gosto dessas ruas do entorno. Da Guarani, com suas lojas de couro, das do (bairro) Barro Preto, com suas lojas de tecidos. É um lugar que eu frequento porque, com o teatro, circulo nesses locais para fazer produção de figurino, em que é preciso tecido, cortina, rotunda…”, observa.
Embora prefira, declaradamente, circular por áreas centrais, há alguns outros destinos próximos ao JK que agradam o ator. “Sabe que, em algumas contas, aparece como se eu morasse no Lourdes, mas eu acho uma coisa meio antipática, não me identifico. Se me perguntam, digo que moro no centro”, confessa. Mesmo assim, se reconhece seduzido pela avenida Barbacena, no bairro Santo Agostinho. “Aquelas árvores são exuberantes”, elogia, lembrando-se também da praça da Assembleia, na mesma região. “Também é um lugar que considero super interessante, com aquela igreja que é uma construção estranha, uma coisa meio sci-fi, meio pagode… Me lembra uma nave”, ri.
Os percursos
No caso de Paulo André, a história daquele às vezes enganoso “ali de mineiro” se cumpre à risca. Afinal, percorrer distâncias é, para ele, uma oportunidade. Trata-se de um autêntico flâneur, como descreveu João do Rio.
“Morar aqui mudou minha relação com o percurso, com o trajeto. Quando eu morava no Santo Antônio, eu tinha que ir de carro para a sede do Galpão (no bairro Horto, zona Leste da capital). Eram sete quilômetros a serem percorridos e, para ir de ônibus, eu tinha que pegar dois. Depois, quando eu mudei, passei a ter a possibilidade de pegar uma linha só, saindo da av. Amazonas e desembarcando na av. Silviano Brandão”, diz.
A facilidade fez com que, cada vez menos, optasse por usar um carro. “Depois que roubaram os os retrovisores, então, falei que não dirigiria mais dentro de BH”, lembra. Por isso, antes que a pandemia da Covid-19 suspendesse provisoriamente a possibilidade dos encontros presenciais, Paulo André incorporou uma rotina em que, para ir, recorria ao transporte público ou, eventualmente, a motoristas de aplicativo. Já na volta, preferia fazer o trajeto a pé. “Depois dos ensaios, já está de noite, está mais fresco, coisa de oito ou nove… E isso deixa a caminhada, de cerca de uma hora, muito agradável. E era bom que eu aproveitava para passar ali na rua Sapucaí (no bairro Floresta, na regional Leste), com aqueles bares e toda aquela gente, comprava uma Heineken e já vinha tomando”, recorda.
A relação tão umbilical com a urbe é característica orgulhosamente destacada. “Eu gosto muito dessa vida bem urbana. E, na verdade, meu trabalho depende de grandes centros. Não seria possível fazer teatro no interior. É algo que precisa da pulsação de um centro urbano, de forma que, por mais que o Galpão seja um grupo que viaja muito, ter a nossa sede aqui é fundamental. Esse é o lugar de criação e ele é contaminado por essa ligação direta entre a metrópole e a sala de ensaio”, indica.
A reclusão
Pela toada da conversa, é previsível que, como para um sem-número de pessoas, a reclusão imposta pelo coronavírus significou uma turbulência na rotina de Paulo André.
“A coisa que eu mais quero ultimamente é me vacinar, é ver todo mundo se vacinando”, disse ele que, dias após a entrevista, recebia a primeira dose do imunizante contra a Covid-19, o que classificou como a realização de um sonho. Quando falou com o VivaJK, contudo, era ainda a agonia da espera que dava o tom de suas manifestações.
“Eu era uma pessoa que ficava pouquíssimo em casa. E, agora, estou há um ano e três meses praticamente sem ir à rua. Tem sido, de certa forma, difícil. Principalmente porque nós, da classe artística, estamos privados de nosso trabalho, uma vez que o resultado do nosso ofício se dá no presencial, no ao vivo – e produzir virtualmente tem sido um desafio novo para todos nós”, registra.
“Quando chega à noite, para mim, é o momento mais difícil. Nesse período, geralmente, estaria no Galpão trabalhando em cenas. Mas, não. Estou aqui, trancado em casa”, comenta, ponderando se sentir privilegiado por atravessar a maior emergência sanitária dos últimos 100 anos com algum conforto.
“É uma loucura. Essa doença coloca todo mundo em um lugar mais ou menos igual. Mas, aqui no Brasil, a desigualdade social é tão gigantesca que temos que achar bom por ter o mínimo, por ter o que comer, por ter trabalho, ainda que em condições distantes das ideais”, critica. “Do meu lado, há diversos artistas que conseguem trabalhar. E há a doença maior do país, que é esse governo, que se aproveita de toda essa situação para acabar com o que ele quer acabar, com o que ele já vinha acabando”, prossegue.
Entre os projetos rodados pelo Galpão já no contexto pandêmico está a peça radiofônica “Quer Ver Escuta”, composta por paisagens sonoras, diálogos, narrações e performances acústicas que mistura ficção e realidade em uma linguagem que, bebendo da poesia contemporânea, se desenrola como uma espécie de “teatro para os ouvidos”. No elenco, além de Paulo André, estão Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia e Teuda Bara. O espetáculo também congregou participações, incluindo o ator Paulo José, ícone do cinema, do teatro e da TV, morto neste 2021, aos 84 anos, em decorrência de uma pneumonia.
O alívio
Em tempos tão bicudos, Paulo André buscou refúgio em antigas paixões: a literatura, o cinema e a culinária. E, na medida do possível, não escapou de uma tendência característica desse período: a de rearranjar o ambiente doméstico.
“Nas primeiras semanas, quando tudo parou, eu fiz a arrumação da estante. Coloquei os livros em ordem alfabética. Isso levou uns sete dias. Foi a única coisa grande que fiz. E era o máximo que dava para fazer, porque é casa de arquiteto. Tudo muito bem pensado, não dá para ficar mudando muito as coisas do lugar. Até porque se o Marcelo chegasse aqui e eu tivesse inventado alguma coisa, desconfigurado o ambiente, ele teria uma síncope”, brinca.
O espaço, de fato, foi pensado sob medida para abrigar a família. Além do marido, Paulo convive com Gandalf e com Dora. O primeiro, um gato de 18 anos que, no lugar do nome imponente, atende por um apelido fofo: Fifinho. “Ele é espertíssimo, até hoje, mesmo sendo um senhor de idade, salta das alturas e só perdeu dois dentinhos”, conta. A última, uma gatinha rechonchuda que recém completou 9 anos. “Nós chamamos ela, que é uma balofinha muito brava, de Loló. Todas as marcas de arranhões que tenho vieram dela”, conta.
Também foi uma companhia preciosa, principalmente nos primeiros meses desde a chegada do coronavírus ao Brasil, o escritor mineiro Pedro Nava (1903-1984). “No princípio, decidi também sanar uma dívida que eu sentia ter com ele, então me dediquei a seus livros. Achei que iria durar o tempo da pandemia, mas o Pedro Nava acabou e a pandemia ainda está aí”, comenta.
Na sequência vieram trabalhos do filósofo Paul Preciado, incluindo sua publicação mais recente, “Um Apartamento em Júpiter”, passando por “A História Social do LSD no Brasil”, do jornalista Júlio Delmanto, e “Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ”, do espanhol Paco Vidarte.
Entre uma obra e outra, “chega uma hora que vou saturando daquela posição, dou um tempo na leitura e vou para o YouTube, ver vídeos de cozinha. Ultimamente, tenho visto muita coisa de culinária tailandesa e gosto muito de assistir ao conteúdo da Paola Carosella”, menciona, inteirando que cozinhar é, para ele, um passa-tempo.
Em termos de cinema (séries não lhe agradam), recentemente se viu arrebatado pela mostra dedicada ao cineasta Wong Kar-Wai, de Hong Kong, que foi disponibilizada na plataforma de streaming Mubi. Outros dois ritos compõem o cotidiano do ator: “À noite, eu bebo, porque me distrai. E também faço muita paciência. Eu adoro jogar paciência no celular”, comenta.
As imagens que seguem foram gentilmente cedidas pelo fotógrafo Filippo Bamberghi e mostram o apartamento tipo 4 reformado pela Play Arquitetura