“Penso nessa casa de vidro que o arquiteto Pierre Chareau acaba de construir em Paris. É uma casa para família, e todas as paredes, portas, mármores, metais e boiseries são de vidro autêntico, inquebrável e translúcido. O telegrama não diz, mas está se vendo que para uma casa assim de vidro, só uma família de vidro… Porque até agora a casa não era só o lugar do repouso e do café matinal, em chinelas, com a alegria dos filhos promovendo desordens no alpendre. Era também, e principalmente, o lugar onde o indivíduo se abrigava do mundo… Agora, surge-nos o sr. Pierre Chareau e instala, numa casa de vidro, um homem sem mistério e sem intimidade…”.
Certamente é nesse trecho de “A Casa Habitável” que Carlos Drummond de Andrade explicita, de maneira mais enfática, sua crítica à impessoalidade das casas modernas e, sobretudo, ao uso de estruturas metálicas combinadas com vidro, uma tendência arquitetônica que surgia como uma atraente inovação nos anos 30. À época em que escreveu a crônica, Drummond vivia em Belo Horizonte, onde viveu por 14 anos até se estabelecer no Rio de Janeiro, então capital nacional.
Escrevendo sobre um modelo arquitetônico que ainda poderia parecer algo distante, a crítica do itabirano acerca daquela novidade que vinha de Paris somente décadas depois encontraria em BH representação vultuosa. Mais de duas décadas após a publicação da crônica, pelas mãos de Oscar Niemeyer, as duas torres que compõem o edifício JK surgiriam como um projeto. Finalmente, nos anos 70, após anos como um “elefante branco” no centro da capital mineira, o prédio se tornaria um imponente marco na paisagem da cidade construída sob a égide da modernidade e que assumiria o posto de celeiro do modernismo no país.
Não deixa de ser curioso que ainda hoje, mesmo que reconhecidamente um patrimônio do município, a transparência das amplas janelas do prédio seguem causando certo estranhamento aos observadores (afetivamente) distantes. Manifestando uma sensação muito próxima àquela expressa por Drummond nos anos 30, muitos se mostram desconfortáveis em se imaginar vivendo no lugar. Essas pessoas acreditam que seria impossível resguardar qualquer traço de privacidade habitando essa espécie de “aquário urbanoide”.
Impressões que, por anos, foram compartilhadas – pelo menos, em alguma medida – pela consultora de projetos culturais, produtora e roteirista Mônica Cerqueira. Contudo, há 7 anos, essa ideia de que as estruturas de vidro da edificação poderiam dissolver os limites entre público e privado foi posta em rota de colisão com uma realidade de individualidades muito bem demarcadas no interior do edifício JK. Foi o que ocorreu quando Mônica se instalou no bloco B, na torre mais verticalizada do edifício, e descobriu que, em sua estrutura, ao contrário do que possa parecer, o prédio é capaz de resguardar a intimidade e os mistérios de uma família que não é de vidro.
“Eu tenho o (talvez mau) hábito de ouvir música alta, por outro lado, detesto incomodar os outros. Para a minha surpresa, por causa das paredes grossas e essa coisa invertida, da lógica dos duplex em que é até difícil saber quem é seu vizinho de parede, minha música não incomoda ninguém. E esse é um detalhe que tem um significado para mim”, comenta a agitadora cultural, lembrando de como são comuns os relatos de conhecidos que vivem em prédios de paredes menos espessas e que acabam participando, sem querer, da vida cotidiana de seus vizinhos, ouvindo passos, sons, conversas. “É engraçado. Quem passa por aqui uma única vez pode pensar que, com uma porta do lado da outra, as convivências se misturam, mas não é nada disso”, reforça.
Bilhete
Um detalhe notável nessa história é que, mais do que nessa ligeira equivalência de impressões, os caminhos de Drummond e de Mônica já haviam se cruzado anteriormente.
Em meados dos anos 80, recém chegada à casa dos 20 anos, ela enviou para o itabirano um poema autoral e um bilhete em que confidenciava ter o sonho de ser escritora. Na missiva, Mônica reconhece que sentia-se inapta, como se sua poesia ainda fosse muito infantil. Definitivamente, uma opinião que destoava da de Drummond. Em uma correspondência, com sua caligrafia inconfundível, o poeta respondeu Mônica em palavras de incentivo. “Nem tola nem infantil; antes humana e sensível. Foi assim que eu vi você através do poema Maria Rita”, pontuou no cartão postal.
“Antes de escrever para ele, eu já havia conversado com o (escritor mineiro) Oswaldo França Júnior, que também tinha me apoiado. Mas, mesmo assim, decidi que precisava da aprovação do mestre e falei que só publicaria (o livro que ela vinha preparando) depois disso”, recorda. Todavia, mesmo depois de tomar coragem para lhe escrever e de ter uma promissora resposta dele, Mônica ainda assim declinou de levar adiante o projeto.
“Eu gosto de jogar o olhar para longe, e aqui tem muito céu…”
A chegada
A depender de como se olha, mesmo que nutra uma flagrante reverência pelo escritor, pode-se dizer que, décadas depois dessa primeira troca de correspondências, a produtora voltaria a “contrariar” Drummond, dessa vez, ao experimentar aquele modelo de habitação que havia sido alvo de críticas do então cronista.
Sem nunca ter pensado em viver na região central de Belo Horizonte, Mônica chegou ao Conjunto Residencial Governador Kubitschek aos 56 anos. Ainda que não faça essa relação em toda a conversa com o VivaJK, que aconteceu por videochamada em um dos momentos mais críticos já vividos em todo o país em função da pandemia de Covid-19, é sensível como a moradora encontrou no prédio ressonâncias de ambiguidades que também são suas. E esse paradoxo entre a preservação da intimidade e a integração à coletividade da urbe, tão característico do JK, aparece entre os elementos que ecoam no âmago de Mônica. De alguma maneira, é como se temperamentos e contradições da moradora e morada se encontrassem harmonicamente.
Toda essa história, porém, tardou a começar. Mônica precisou olhar de novo para então descobrir o edifício, que sempre se ofereceu ao olhar dos belo-horizontinos e que por décadas ostentou um luminoso relógio tido como um marco de referência geográfica da cidade.
“Morei muito tempo no Sion, no Anchieta (ambos na região Centro-Sul de Belo Horizonte) e até no Buritis (na região Sul da capital). Eu não me imaginava morando aqui, nunca tinha cogitado me estabelecer nesse prédio. Mas, quando fui comprar um apartamento, eu era apresentada àqueles com janelas pequenas, que davam para o vizinho, sempre em um ambiente um tanto claustrofóbico. Era tudo o que eu não queria, até que esbarrei com um vídeo do interior de um apartamento no JK em um blog. Foi o bastante para eu me decidir, porque eu gosto de jogar o olhar para longe, e aqui tem muito céu… Apesar dos prédios horrorosos, o céu compensa ”, situa Mônica Cerqueira, lamentando o que entende como a carência belo-horizontina de um ímpeto de preservação do meio urbano.
Nota da redação: pedindo licença aos leitores para um breve interposto, pois é um tanto curioso – e talvez irresistível – notar como, quando a transparência é vista de dentro para fora, a sensação de integração à cidade deixa de ser desconfortável e, diferentemente do incômodo manifestado em “A Casa Habitável”, passa a ser bem-vinda.
Voltemos ao que interessa: seduzida pela (paradoxal) sensação de respiro que o lugar lhe transmitia, ainda que na agitada região central de BH, a boa impressão dilatou-se depois da primeira visita ao local. “A luz é linda, a circulação do ar… Isso me encantou. Acho muito curioso. Um prédio muito inteligente, que não mostra tudo o que ele tem”, diz. Quando também se impressionou com o já citado fato de, surpreendentemente, a vida no interior do prédio garantir uma privacidade que contradiz a transparência das paredes-janelas. Aliás, não por mero acaso a vista que se estende ao horizonte tornou-se elemento protagonista para a escolha do apartamento.
Ocorre que a história de Mônica é umbilicalmente ligada ao que é imagético. Particularmente, sua trajetória se confunde com a tradição do cinema em Belo Horizonte. E, como ela própria admite, “minha profissão se mistura comigo mesma, é algo que faz parte da minha essência. Eu tenho uma bancada grande, cheia de canetinhas coloridas e papéis. É o meu espaço de trabalho, que é o principal lugar da minha casa, junto com meu som. A primeira coisa que fiz quando me mudei foi arrumar esses lugares”, comenta. Em comparação, cita que o quarto dela é até meio franciscano: “É um ambiente austero, bem simples mesmo”. “Eu sinto que tenho um escritório com uma cama para dormir. O que não é ruim. Como disse, minha vida e ofício se confundem, além do quê, normalmente trabalho com amigos, então há também um componente afetivo”, sublinha.
A trajetória
Mônica Cerqueira recorda que a sua aproximação com o cinema se deu por sua passagem por um dos mais tradicionais espaços culturais de BH. “Antes de me formar em comunicação (pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC Minas), entrei para o Palácio das Artes, e fiquei lá por uma década como programadora da Sala Humberto Mauro. Do meu trabalho com a cultura e mesmo de minha vivência cultural, devo muito àquele lugar, um espaço pelo qual tenho um carinho muito grande”, lembra.
Posteriormente, a produtora enveredou pela abertura de cineclubes na cidade. O primeiro foi o Savassi Cineclube, inaugurado em 1988, depois, em 1991, veio o Usina de Cinema e, em 1996, o Cine Imaginário. “Nenhum desses espaços era só cinema. Sempre tiveram muitos cursos, debates e exposições. Nunca me contentei em ser simplesmente uma exibidora”, sublinha ela que, entre seus patrocinadores, era tratada como uma “agitadora cultural”.
“No Savassi, a gente lançava muitos filmes. Eu lembro, por exemplo, de receber o Nelson Pereira dos Santos (um dos expoentes do Cinema Novo)”, comenta. “O Cine Imaginário certamente foi o mais incrível, porque tinha um aspecto de convergência. Era um lugar que, além do cinema, recebia shows e lançamento de livros. Tivemos apresentação do Tom Zé, do Itamar Assumpção, da Cida Moreira, do Pato Fu e do Arnaldo Antunes, para ficar em alguns nomes”, recorda. Deste último, Mônica lembra-se de, após o show, vê-lo dançando, despojado de qualquer estrelismo, entre os outros frequentadores do local.
“Funcionava assim: o convidado, em um primeiro dia, participava de um bate-papo e de uma apresentação com voz e violão, tudo bem despretensioso. Depois, no dia seguinte, acontecia o show. No fim, o pessoal gostava de fazer do espaço uma pista de dança. E o mais legal era ver que os artistas circulavam sem serem importunados, com muita tranquilidade”, pontua.
Por conta das trocas possibilitadas por essas iniciativas, Mônica tornou-se amiga de Waly Salomão e de Lúcia Rocha. No “Usina”, uma exposição de desenhos de Glauber Rocha aconteceu, em parte, por conta dessa proximidade da produtora com a mãe do celebrado diretor.
“Quando penso em assistir a um filme, em uma sala de cinema, penso em coletividade. Rir junto ou chorar junto é ótimo. E as conversas de depois do cinema são ótimas também. Por isso, todos meus cinemas tinham bar.”
O coletivo e o particular
Toda a bagagem cultural acumulada nesse tempo fez recrudescer em Mônica a sensação de que o cinema é um bem coletivo. E é por isso que ela acredita que as salas de projeção sobreviverão à pandemia de Covid-19. “Nesse momento, em que a cultura foi atingida no cerne, no coração, é quase delicado falar em futuro. Não sei quando vamos voltar a ir ao cinema, a grandes shows, ao teatro… Tudo isso ficou comprometido, e parece que vai ficar por um tempo ainda”, observa. “Acho que uma vida sem esse tipo de fruição com a arte fica comprometida. Quando penso em assistir a um filme, em uma sala de cinema, penso em coletividade. Rir junto ou chorar junto é ótimo. E as conversas de depois do cinema são ótimas também. Por isso, todos meus cinemas tinham bar. Eu sempre pensei que esse é um espaço de convivência. E tenho certeza que isso gerou muitos frutos, porque muita gente se juntou nesse lugar em um momento muito rico, potente. Muita gente passou por ali, como (os cineastas) Helvécio Ratton, Éder Santos, Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Rafael Conde”, assinala.
Concomitante a essa compreensão do aspecto coletivista de uma sala de projeção, e de como esse elemento é vital ao próprio cinema, Mônica explora um aspecto mais solitário e que também é essencial à sétima arte: “Uma coisa que acabou acontecendo, depois de todo esse percurso, foi eu me atrever e partir para a área de criação”, relata ela que, além da atuação como consultora, passou a desenvolver roteiros cinematográficos. Logo de início, trabalhou em parceria com um dos pioneiros da arte multimídia no Brasil, o videoartista Eder Santos. Com ele, fez “Deserto Azul”, 2014, e “Girassol Vermelho”, em pós-produção. Na sequência, foi roteirista de uma série sobre agroecologia, a “Água de Plantar”, que conta com 23 episódios e está atualmente em exibição pelo Canal Futura.
Um dos projetos que vem desenvolvendo é feito em parceria com o artista colombiano, André La Rocca, um videoartista de Bogotá. “Escrever um roteiro, para mim, é ampliar meu campo de pesquisa. Em geral, ao escrever sobre, leio muito sobre aquele campo de conhecimento. Mas esta é uma atividade solitária, mesmo quando fazemos algo em parceria com alguém. Porque a gente discute muito, mas a escrita, em si, vai ser necessariamente um processo que se faz sozinho. Nesse sentido, a pandemia da Covid-19 se ajusta a esse tipo de condição. Mas claro que não vale a pena passar por ela. Preferiria ter outros momentos de solidão, por uma organização interna, e não em razão de uma emergência de saúde global”, observa.
Viva JK
Além e simultaneamente aos trabalhos que desenvolve como roteirista, consultora e produtora, Mônica Cerqueira também dedica-se aos projetos do coletivo Viva JK, que se propõe a missão de conectar o Conjunto Governador Kubitschek à população de Belo Horizonte para, juntos, construir um patrimônio vivo, harmônico e plural. “Alguns membros do grupo já conheciam o meu trabalho quando me convidaram, creio que entre 2019 e 2020, a fazer parte, o que aceitei de pronto”, comenta, reforçando a admiração que sente por seus vizinhos.
“Conheci pessoas incríveis nesse ínterim”, diz ela, complementando que o coletivo funcionou como um imã dessa construção de amizades e nutrindo a expectativa de que, em breve, encontros presenciais voltem a ser possíveis. Por ora, todas as reuniões e eventos do coletivo têm acontecido por videochamada, que foram entrando para a rotina de Mônica. “Temos projetos muito importantes para o prédio. Um deles, que estamos empenhados é resgatar os espaços de convivência que o JK originalmente previa”, sublinha, fazendo menção ao idealizado museu e mirante urbano que vem sendo desenhado para ocupar uma galeria e esplanada do edifício histórico. “Trazendo a ideia para a contemporaneidade, não pensamos em ter estático, mas em algo que possibilite uma variedade de usos do espaço, que imaginamos como um lugar mais contemplativo na região central de BH”, antecipa.
Detalhe: de todos os espaços culturais idealizados por Mônica, o mais longevo foi o Usina de Cinema. Ocupando galpões antigos, com telhado de barro, que foram demolidos nos anos mais recentes, o empreendimento estava localizado a poucos metros de onde, espera-se, funcionará o Mirante Urbano JK (MU.JK), como o embrionário projeto vem sendo chamado. A produtora lembra que, quando iniciou as operações do empreendimento, nos anos 90, havia pouca atividade comercial na região.
“A abertura do espaço levou um movimento de bares e restaurantes para o entorno, o que é uma característica dos empreendimentos culturais de ser uma rampa para negócios que aquele público consome”, observa. “O Usina trouxe isso na década de 90 e a gente quer que o MU.JK traga isso agora, nesses anos 2020. E que esse seja um lugar tão ou mais marcante que o Usina foi naquela década”, aponta. “Esperamos (o coletivo VivaJK) ver isso concretamente. E que, existindo, o projeto seja o início de muitas outras iniciativas que permitam imprimir ao JK aquela ideia pensada por Niemeyer de fazer confluir público e privado, de estabelecer uma relação com a cidade abraçando-a, e não se fechando a ela”, inteira Mônica.