• 11.09.21
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Até que a palavra morar faça sentido

minhocas debaixo do travesseiro

De: Telma                                                                 sáb., 20 de mar. de 2021 12:04

Para: Amanda

acho que estar rodeada dessa mata me inspira. Retomo aos emails /o/

ontem eu disse a vocês que dormiria cedo. Deitei cedo, de fato. Depois de montar o meu altar no quarto, acendi vela e incenso de arruda pra dar uma defumada no ambiente novo. Entrei dentro do mosquiteiro – que vem sendo um lugar muito comum nesses meses e que sempre remeto ao isolamento dessa pandemia: uma bolha onde eu não posso ser atingida. Entrei dentro do mosquiteiro e liguei a música nova da Phoebe Lou.

mother’s eyes, eu tava muito ansiosa pro lançamento. Lá em outubro eu vi uma live em que ela tocou essa musica e eu fiquei tão emocionada que fiz questão de gravá-la no meu gravador do celular. Me senti nos anos 00 gravando fitas k7 a partir das músicas do rádio. Tenho no corpo essa lembrança deu agachada no chão do meu quarto, com o rádio na frente, esperando o momento certo de dar o rec. Ao mesmo tempo que queria a música em streaming pra compartilhar com todos, tinha um certo receio de revivê-la, porque pra mim ela acabou virando uma música de rompimento. E aí fui eu colocá-la no repeat ontem. Acho que escutei o máximo de vezes que alguém poderia ter escutado desde o lançamento – eu gosto muito de me deixar impregnar.

pensei em várias coisas, tinha acabado de conversar com Déborah (a Paiva, que tá lá em João Pessoa) e os papos de cura estavam se reverberando. Desliguei a música e me virei pra dormir. Senti um movimento no meu braço quando coloquei ele debaixo do travesseiro. Traumatizada com uma outra vez que eu ignorei movimentos na cama e era um escorpião, rs, eu levantei e levantei o travesseiro. Ai vi uma minhoca

não acreditei. Fui pro outro lado da cama pegar o celular e ligar a lanterna. Quando liguei ela tinha desaparecido. Bem, não sei muito bem como uma minhoca desaparece em questão de segundos. Mas sei que ela tava ali por mim, a minhoca como animal de poder. Imagina: um bichinho daquele que tem como propósito renovar a terra, renovar a mãe-Terra e, logo, me renovar, me curar.

penso em krenak, em todo o poder das plantas, dos animais, dos encantados.

você conseguiu colocar minhocas na composteira? XD

um beijo e meu coração,

Telme

Ilustração: à esquerda, a paisagem de uma praia com falésias. O sol nasce no horizonte do mar. Um aviãozinho de papel corta a imagem, abrindo-a transversalmente, delimitando outro quadro de cena à direita. Nela está ilustrada a fachada do JK. Em uma das janelas está uma mulher em pé estendendo a mão alcançando o aviãozinho de papel.
Esta é a troca de correspondências entre Telme e Amanda. Telme partiu para uma temporada na Bahia sem previsão de volta e Amanda está morando em seu apartamento. Os emails trocados, escritos ora da Bahia, ora do Edifício JK, serão publicados semanalmente no site Viva JK em uma série que a dupla chama de “Até que a palavra morar faça sentido” – inspiradas nas correspondências de Ana Martins Marques e Eduardo Jorge do livro “Como se fosse a casa“.

Abaixo, os emails anteriores

09 • quantas xícaras?

De: Telma                                                                                sáb., 23 de jan. de 2021 12:30

Para: Amanda

fiquei morrendo de vontade de experimentar seu muffin de banana, principalmente pelo quesito intuição da receita. Acho que essas são as melhores e quando comecei a ler só lembrei de uma coisa que aconteceu: 

No último dia de Letícia e Thiago aqui eu fiz um almoço que ficou muito bom. Era um feijão fradinho que minha ex sempre fazia com pedacinho de coco e coentro. Além dos pedacinhos de coco, na hora me deu na telha de fazer um leite de coco, deixei o feijão cozinhar nele. Fica MUITO bom. Fiz uma farofa também, bem alhuda, com o resíduo do leite. Tudo muito gostoso, usando tudo que eu tinha ali na hora – coco panhado do pé pelo Enzo*. Todo mundo gostou, elogiou, repetiu. E tava tudo bem até que Enzo* abre o bloco de notas do celular e começa a anotar a receita do meu feijão.

Eu estaria bem confortável de falar como eu fiz, o que eu coloquei, num guardo segredo não, mas ele queria saber quantos quartos de xícara eu usei de azeite! Ele queria MEDIDAS de cada ingrediente. E eu até tentei estimar ali no começo, mas depois perdi a paciência. Por que eu tinha que transformar aquela comida em medidas pra que outra pessoa pudesse reproduzir? Será que, mesmo se eu conseguisse dizer com precisão, ficaria bom igual? Fiquei com essa sensação de que é isso que fazem sempre: pegam o modo feminino, transformam em algoritmo pra poder reproduzir e imediatamente deixa de ser. E escrevo isso e já vejo escrito também no seu email: tirar a gente da gente mesmo. Meu feijão tirado dele mesmo.

hoje foi aquele dia que eu segui sua dica de ir pra reunião de zoom pra ler em grupo o texto da Eliane Brum. Depois a gente conversou um tempão por vídeo. Mas ainda assim tenho assunto pra esse email. Não é impressionante?! rs

durante toda a leitura do texto eu só pensava nessa do feminino: como seria ter uma líder mulher num momento de crise desses. Talvez meu choro seja mais sobre isso. Sobre vislumbrar a possibilidade de ter um cuidado real, de me sentir como quando eu vou ao posto de saúde do SUS, onde depois de 30 anos consegui entender a saúde como cuidado integral, não como a mercadoria dos planos de saúde. Vislumbro e me frustro com a realidade encarada: a Cloroquina nunca pensada como solução, mas sim como fantasia pro trabalhador se sentir apto a trabalhar. Realidade genocida – tem que dizer de novo pra num esquecer e normalizar o que a gente vive.

por falar em Eliane Brum, tem um vídeo-entrevista dela andando por Altamira. Ce já viu? Esse foi um vídeo importantíssimo pra mim em 2019. E eu gosto muito de como ela pensa as coisas. Ela conta do processo da Usina do Xingu. E ai me lembro que essa questão não pode ser tratada somente com um saudosismo de Dilma no poder. Acho que é deslocar esse conflito de governos de direita e de esquerda e levar pra um anticapitalismo mesmo. Só assim para pensar o cuidado.

tou aprendendo a tocar ukulele. É outro indício de que não é suficiente ter a receita de como tocar. Não basta saber as medidas dos acordes. É engraçado porque exige muita repetição e às vezes acho que o vizinho ta escutando e vai bater aqui pra pedir pra que eu, pelo menos, tente outra música. Mas tem um verso de Paul que, toda vez que eu toco, me lembro do seu email, sobre querer alguém pra ser o salvador. Eu também me pego nessa várias vezes. Ela diz “And I swallow all of it as I realize there was no one who could kiss away my shit”. E eu sei, por mais que a gente se dê conta de que não tem ninguém pra nos salvar, parece que precisa ser lembrado na mesma repetição como a de aprender a tocar um instrumento.

eu vou gravar Paul e mandar pra você, pode ser que soe como companhia nesse domingo. Aliás, é um convite pra que a gente construa outras possibilidades de domingo em companhia, pra além da única possibilidade do amor romântico que nos é contada.

me inscrevi num curso de Sonhos! As bijuterias nunca apareceram nem em sonho pra mim. Será? Bem que eu queria aprender a fazer aquelas miçangas bonitas.

beijo e o coração,

T.

08 • você tem feito bijuterias?

De: Amanda                                                                 ter. 19 de jan. de 2021 20:45

Para: Telma

“Mas aqui me conta uma coisa Amanda: o que é que Telma foi fazer na Bahia?” Antes mesmo de eu conseguir formular uma resposta vem uma nova pergunta: “Ah ela mexe com bijuteria?” Confesso que quis muito rir ali na hora. Mas me segurei e nos momentos que tive tentei minimamente abrir um pouco mais o espectro daquela minha Tia. Quase que soltei um, ela tá fugindo dos maridos, vendo a lua cheia no mangue, esperando a maré baixar para voltar pra casa… Mas supus que era muita vida para alguém tão inserida no modelo do trabalho. O Jorge (Sensei Koho) me disse que a origem da palavra trabalho vem de instrumento de tortura chamado triparium (emoji de olhos olhando para o lado). Esse encontro aconteceu há 2 semanas. Mas cheguei a ouvir essas mesmas perguntas de outros familiares (da nossa família em comum). Como assim? Mas onde ela vai ficar? Vai deixar o apartamento dela? 

Acabei de perceber que além de negar os maridos e o modelo capitalista, estamos também negando as CERTEZAS de uma vida pronta. Eu sei que no final das coisas é tudo uma coisa só. Mas percebi nessas conversas como pode ser dolorido para quem não sente a abundância, o medo de não ter nada e na busca de ter mais e mais perder o sentido das coisas essenciais. O medo de esvaziar a mochila e sentir a brisa. Eu sei, é outra geração, outras perspectivas… mas pensando bem a maioria deles já tem dinheiro para viver o resto da vida sem se torturar ainda mais. Pra quê? Acumular riquezas pra qual vida? 

Voltando ao quarto e às paredes.

Por enquanto, tenho dormido eu e eu mesma aqui. Algumas tentativas frustradas de convidar um desconhecido do tinder para conhecer essas paredes. No sábado até chorei. Talvez mais de raiva de mim mesma. Mesmo sem querer, caio no buraco de ficar esperando alguém que possa me salvar (diacho de marido). Tenho uma projeção dos domingos em casal, que vivi raríssimas vezes, mas imagino que seja ter uma companhia aos domingos (desconfio que venha do cinema, kkkkrying). As luzes do dia começam a entrar no quarto e lentamente vamos acordando, como é domingo (ainda na lógica do capital, o único dia possível de uma preguiça extra na cama) passamos algumas horas ali fazendo nada, acordando bem devagar (mente pisciana). Mas confesso que estes dias estou off e fazendo uma investigação interna aqui. Talvez neste mesmo processo de buscar essa essência em mim. Sei bem que não faz o menor sentido acordar com um louco nos domingos pela manhã. Só pra ter com quem acordar? Mas talvez também sejam essas frustrações que nos façam voltar o foco para o eixo, nós mesmas.

Estranho pensar nos sonhos. Desde sábado que descolei dessa expectativa e busca frenética por companhia (principalmente via tinder). A partir de então, tenho lembrado dos meus sonhos com detalhes (sou ótima para sonhar e delirar). Como se eu estivesse mais comigo. Talvez seja esse o segredo de sentir as piscadelas e os caminhos mesmo que sem propósitos, estar dentro da gente mesma. Todavia segue um desafio. Será que o propósito do capitalismo é em suma tirar a gente da gente mesmo?

Hoje fiz muffins de banana, ficaram uma delícia (não há quem possa contradizer, então é uma verdade absoluta). Fiz imaginando uma receita, seguindo minha intuição. Talvez seja mais uma piscadela para confiar nela.

um cheiro e um abraço, 

07 • deixar pessoas loucas fora da cama

De: Telma                                                                       qua. 13 de jan. de 2021 16:11

Para: Amanda

eu gostei tanto de pensar junto o seu anexo. Pensei: e se daqui pra frente tiver registro de coisas que aconteceram nesse quarto? Já veio um projeto de escrita, já pensei em quem já dormiu aí comigo (ou sem) e que poderia escrever. Se identifica? Minha lua e meu Marte são em peixes (: e quantos desses personagens não existiriam se não fosse o tinder?

na minha leitura de mapa astral a Júlia disse que uma das vantagens deu me comprometer com uma prática espiritual formal é que eu vou aprender a deixar pessoas loucas fora da minha cama. E achei que tem a ver com isso, sobre identificar as piscadelas certas. Ou ainda, sobre o trecho da Clarisse, permitir que o que não é visível seja também de verdade. Acho que aquele processo de investir no meu feminino, que falamos aí no 583, tem a ver com isso: sobre considerar também esses ~outros mundos que a intuição nos traz, considerar os sonhos, as alucinações, as mangas.

um dia desses eu tava fazendo reiki e me veio uma imagem: um homem caminhando por uma estrada de areia, ele chega ao fim dela onde existe uma praça circular e onde abrem vários outros trajetos e nela existe um burro. Ele sobe no burro e da voltinhas e voltinhas e voltinhas, desce, amarra de novo o bicho na árvore onde ele tava antes e volta feliz pelo mesmo caminho.

às vezes o tinder é isso também, haha. Ou talvez a vida seja assim mesmo, na repetição, sem que um caminho deva ser escolhido. Conversei com o Pedro agorinha mesmo, ele já tá em Praga, e ele me contou que o nome Tcheco da rua onde ele mora significa “sem propósito”. É uma rua em U que liga uma rua a ela mesma. Achei linda.

será que num são essas voltinhas despretensiosas que definem um caminho?

daqui termino essa correspondência ainda pensando qual história do quarto eu contaria, haha

um beijo e um coração,

T.


06 • será que a vida acontece na incoerência?

De: Amanda                                                                           sab. 9 de jan. de 2021 19:03

Para: Telma

Será o Tinder (e demais apps) um duvidar da capacidade do portal? Da magia? Ou seria ele um aliado do universo? Estou confusa! Por um lado o Vicente* aparece para minha amiga pelo aplicativo, e aparece num raio altíssimo que eles NÃO colocaram. Contei aqui agora tenho 43 machs em menos de 1 mês (isso porque apaguei o tal aplicativo nesse meio tempo). Algumas pessoas aparentemente interessantes, pouquíssimas conversas legais que ainda prevalecem. Pessoas aparentemente interessantes que desapareceram antes de um Oi. O Tião Rocha que é um Educador Popular brilhante diz de “estar atento às piscadelas da vida”. Não sei se com todo esse volume vazio é possível estar atento a alguma coisa. Me parece um eterno caminhar correndo molhando apenas as canelas no mar. Pra chegar onde? Mas ao mesmo tempo, sem colocar a canela não se pode mergulhar.

Tudo me parece muito incoerente, mas ao ler as frases transcritas da caixinha do seu altar sinto que fico buscando demais os porquês. Talvez estejam nesses porquês a minha dificuldade de arrasar com minha tão fiel civilizatória razão. Essa busca de ser coerente muitas vezes me faz sofrer mais que sentir. Taí o dilema do Tinder para ilustrar. Tenho lido Água Viva da Clarice. Um livro que comprei no fim de 2k19 mas que nunca terminei. “Estou respirando, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Como que a ostra nua respira? Se respira não vejo. O que não vejo não existe? O que mais me emociona é que o que não vejo contudo existo. Porque então tenho a meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade está em alguma parte. Mas é inútil pensar. Não descobrirei e no entanto vivo dela” (poderia citar vários trechos porque aparentemente tanta coisa cabe).

É isso! A gente sai com uma ideia, aí vem a maré e forma uma lagoa viva!

Consegui criar visualmente uma imagem aqui deste momento, me alegro com a presença.

Estar se sentindo na Vida de Tina me parece uma perfeita analogia à viver a vida na incoerência que ela é e que somos. Não que devemos aceitar agressões. Mas estes incômodos de algum modo vem para nos mexer e entender pra onde a balança pesa mais. O que fazer quando a tela perfeitamente planejada projeta só em uma parte da empena? Dá pra ler? Será mesmo que conseguimos controlar tudo? Será que devemos controlar caso possamos? Ou seria mais divertido rir, ainda que de nervoso, e sentir o frio da barriga? Uma vez vi algum vídeo no Youtube de um programa do GNT falando sobre o problema da Monogamia é que tudo tem de vir de uma única pessoa. Não é factível um único ser humano atender a todas as expectativas e fantasias de um modelo capitalista (feito pra ser inalcançável mesmo, as frustrações geram consumo). Ao mesmo tempo, se machuca, já sabemos que não é preciso ficar. Dá pra chegar até a Bahia de carro, sozinha sem um marido. Pensando em tudo isso me vem as duas frases que você destacou do Vicente*, estar viva, para sentir a magia da humanidade tendo nas mãos o que estala ao crescer.

Percebo com minha mãe que há raízes muito profundas neste conceito do marido e na necessidade dele. Como se as metades da laranja fossem quase que inerentes ao existir. Se é difícil pra gente imagina para as gerações anteriores que não tiveram muito como pensar sobre isso. Meu processo com minha mãe tem sido um pouco mais leve desde que vim pra cá. Eu sei que é um trabalho de formiguinha. Não mais para que ela pense como eu mas para que possa me aceitar mesmo não tendo um marido. Por inteira. Reconhecer que é possível, ainda que ela não consiga se ver ali. Acho que tomar uma certa distância e construir este lar aqui me faz ter até mais paciência para com a história dela e honestamente até alegria de olhar para essa possibilidade de crescer que o contato direto com ela me trás.

Acabo de perceber que hoje faz um mês que estou habitando a casinha aqui. Lá fora chove torrencialmente, como nos últimos 3 dias passados. Já está escuro e só a luz do computador ilumina a sala. Me sinto sozinha e estou mesmo. Não é um buraco horrível. Apenas É e tenho tentado viver esses silêncios.

um beijo, que venha mais uma lua nova

(email anexo)

São quase 1h da manhã. Estou lendo com linearidade e atenção Como se fosse casa: uma correspondência. Ao mesmo tempo que quero devorar o livro não quero terminar.

Lendo um dos versos dela…

“Dormimos sobre o cimento dos anos”

Parei para pensar quantas pessoas já dormiram neste quarto. Em todos estes anos, quantas pessoas fizeram do 583 um lar? Tive que levantar da cama para dividir essa pergunta aparentemente sem resposta e irrelevante. Mas achei magnífico imaginar quantas vidas essas paredes já sentiram.

boa noite 

05 • Os ecos do berro

De: Telma                                                                               qua. 6 de jan. de 2021 19:06

Para: Amanda

eu disse por mensagem que aconteceu um berro na madrugada quando Vicente* entrou nessa história. É um pouco do que eu escrevi no Instagram sobre a comunidade estar esparramada criando compartilhamento através do tempo. Mas o que meu corpo sente mesmo é que existe um portal no qual entramos todos e coisas mágicas acontecem por aqui.

tenho carregado meu altar dentro do porta-luvas do carro. Lá dentro está uma caixinha com alguns papéis importantes: cartas recebidas, fotos, recortes de desenho que me tocaram… lá dentro tem um envelope que o Vicente* me entregou no dia em que me encontrou pela primeira vez. Hoje, depois de três anos, parece um tesouro guardado. Tive a curiosidade de olhar pra ele de novo já que Vicente* apareceu citado. Abro agora enquanto escrevo: o desenho de um Logunedé, o joker do baralho e um poema. Leio e me saltam as duas frases: “arraso a civilização em mim para sentir a magia da humanidade me coroar” e “ser ancião é ter nas mãos o que estala ao crescer”.

lembro dos barulhos que escutei enquanto estive sozinha à noite no mangue. Alguns eram de peixes que pulavam na água, mas outros eu tinha a certeza que era o esticar dos galhos que procuravam o solo para se enraizar. Estendi a rede no mangue no último dia do ano. Cheguei por lá às 18h quando ainda tinha luz e um senhor acompanhava algumas crianças que se recusavam a ir embora. O lugar que escolhi foi o mesmo que fizemos a última fogueira: lá o Rio da Barra encontra o mar.

a ideia era presenciar o nascer da lua cheia. Ela me deixou esperando, cochilei. Quando acordei por volta de 20h já não tinha mais ninguém, pude tirar a roupa e entrar em uma das lagoas que o rio forma, foi quando despontou a lua bem vermelha no horizonte do mar. E aí me banhei também da luz.

quando quis ir embora me dei conta que a maré estava abaixando. Com a maré alta, o mar invade o rio e deixa tudo muito calmo, mas a maré baixa permite que a água do rio venha com toda força ser desaguada. Era impossível atravessar. Tenho gostado de observar e aprender o tempo das águas, cochilei mais uma vez. Às 23h consegui atravessar de volta ao caminho de casa. Quando cheguei faltavam 15 minutos pra virada. Letícia e Thiago já tinham bebido algumas doses de cachaça e o Enzo* tinha acabado de chegar também.

seguimos na fuga única: dos maridos e do capital. Ainda não deu pra contar como foi a leitura de mapa astral ou como se deu o milagre de achar uma casa em tempos de réveillon/temporada, mas tou ansiosa pra escutar todas as pautas listadas por WhatsApp.

um beijo e o coração, 

T.

*Alguns nomes são fictícios.

04 • Lá se vão 12 dias, ou seria mais?

De: Amanda                                                                                ter. 29 de dez. de 2020 01:05

Para: Telma

Tem mais ou menos isso que recebi seu email em forma de abraço.

É tanta coisa que às vezes fico zonza.

Nem sei onde começar (quase um mantra né, risos)

Uma amiga esteve aqui por uns dias.

Ela precisava resolver algumas coisas em BH e também queria ver a possibilidade de encontrar pessoalmente um cara que conversava pelo Tinder. Eles acabaram se encontrando e ele tinha um livro de poemas que ela comprou. No livro havia um poema sobre o JK. Achei o poema tão intenso que questionei na hora, será que ele já morou aqui no prédio? Será que ele conhece a Telma? Ela não soube me responder naquele dia. Acabou que ela ficou por mais um dia e se encontrou novamente com ele. Então fez as perguntas. Ele se chama Vicente* e aparentemente nunca morou no JK, mas esteve com você aqui nesta casa. Sério, às vezes (quase sempre) ainda me espanto com essas “coincidências”. 

Voltando à fuga, hoje mais cedo eu conversava com um moço do mesmo Tinder. Um dos poucos que sobreviveu às 2 semanas de conversas efêmeras. Comentei sobre isso de fugir dos maridos e como vim parar aqui, das trocas mais afetivas que monetárias. Então ele me trouxe as seguintes palavras:

“Fugir dos maridos e do capital me parece um gesto só, um análogo ao outro. Maridos e capital me soam como entidades irmãs. O amor, os afetos, o mundo sensível tudo isso é tão maior e vai tão além delas…”

Sabe quando acende uma luzinha em cima da cabeça? Foi mais ou menos isso que me veio. É isso!!! São várias rupturas e ao mesmo tempo as mesmas. Elas (por mais que eu fale e escreva) ainda me parecem muito improváveis a nível racional. Contudo, as sinto na pele, na vibração da música que hoje me fez chorar e sentir que podemos SIM acreditar. Minha cabeça segue pedindo para que eu tome cuidado e não me entregue demais à exponencial abundância. Mas meu corpo agradece como a muito não ousava.

decidiu ficar por ai por mais tempo?

como vai seu Manoel?

Ps:. chegou um novo livro da sua assinatura. Assim que souber de alguém indo para a Bahia tento te enviar.

um beijo e um cheiro,

com amor

Mandi

03 • Novos ou continuações?

De: Amanda                                                                                seg. 14 de dez. de 2020 00:50

Para: Telma

Oii Telminha,

Fiquei aqui me perguntando se deveria criar novos emails ou responder em continuações. Decidi então fazer este novo em forma de continuação.

Me apaixonei pela expressão corajuda <3 

Já se passaram 10 dias desde que entrei aqui na sua casinha. Estou aprendendo o que é esse negócio que eu tanto imaginei que é ter um lar. Como o tempo é relativo, me parece que já tem alguns meses. Já consegui me sentir sozinha e daí baixei o tinder. Um erro talvez, mas erros são importantes nessas experimentações.

Ainda que com medo e sem saber muito bem, tenho tentado sentir e, de um modo muito leve, o que mais tenho sentido nestes poucos dias é a solitude. Mesmo estando conectada com o mundo externo pelas telas, estou aprendendo a olhar para a Amanda só. Me sinto muito feliz e muito agradecida de poder estar experimentando essa sensação. Como se de algum modo bem louco as coisas estivessem exatamente onde deveriam estar.

Fico então pensando daqui no Seu Manoel e seus questionamentos sobre fugir do marido. Pensando bem, talvez seja exatamente o que estamos a fazer. Negar um modo de viver que nos imponha como e onde mulheres com seus 30 e poucos tenham que compulsivamente estar. Seu Manoel tem razão. 

Que Nanã siga sendo disponibilidade para novas formas de se existir. Para que diferentes moldes e configurações possam ser experienciadas por pessoas corajudas dispostas a fugir dos maridos. 

um abraço e um cheiro apertados, 

Amanda

02, mas talvez seja o nono

De: Telma                                                                                   sex. 4 de dez. de 2020 00:15

Para: Amanda

Mandi,

desde 2013 eu enumero emails como quem organiza o tempo. Depois da sua correspondência, justamente sobre ele, cheguei a me questionar se valia a pena essa mania de organização. Desde 2017 eu entendo que o tempo nem é tão linear assim. Talvez este seja o primeiro email, mas talvez também seja o nono. Talvez ele viaje até o futuro pra te dizer de algo que hoje ainda não é. 

cheguei em Trancoso e, bem, dentre todas as coisas boas que tenho encontrado, sempre tem algo que me lembra que eu sou uma mulher sozinha. A história do Seu Manoel talvez seja a mais representativa: tava na praia deserta lendo o livro da Bell Hooks e me deu sede. Olho pra trás e, assim como numa miragem, tem uma carroça com uma caixa de isopor e abacaxis pendurados. Vou lá na esperança de ser um suco dentro da caixa, mas o senhor me avisa que são abacaxis mesmo: geladinhos e descascados no prato. Fico conversando enquanto ele descasca. Um senhor de talvez 70 anos, muito alegre. Conto que quero morar por aqui, que botei tudo no carro, mala cuia e gata, e vim desde Minas Gerais. Primeiro ele fica abismado com a minha idade, me olha de cima abaixo e diz que me daria 16 anos. Depois ele pergunta: mas você já foi casada? Aaa, tu ta é fugindo do seu marido! Ele ria muito a cada contradição. A única possibilidade pro Seu Manoel de existir uma mulher sozinha na praia é ela estar fugindo de um marido. Mudei de assunto, continuei arengando, quis saber mais sobre Trancoso. No final ele me perguntou se era verdade mesmo que eu que tinha vindo dirigindo… eu disse que sim e ele disse: mas tu é mesmo corajuda!

tou me sentindo muito conectada ao mangue. E coincidentemente (ou não) o mangue é de Nanã, orixá conhecida por ser a avó. Na mitologia, ela é mãe de Ikoro, quem controla o tempo – e quem também, a partir de agora, bagunça a numeração dos emails, rs.

que este te encontre a tempo, enquanto ce tiver celebrando a rede nova instalada em casa. E que seja feliz também o seu novo começo!

um cheiro e um coração,

Telma

01 • Em correspondências

De: Amanda                                                                                sex. 27 de nov. de 2020 20:18

Para: Telma

Oii

Acho que era assim que começavam-se as cartas escritas. Já faz muito que não as escrevo. Outro dia sentei para rascunhar em meu caderno e percebi que minhas mãos já se cansaram com pouco. Imagino que escrever deve mover mais músculos que digitar. Não vou buscar essa certeza no google pois bem sei que lá elas estão cheias de vazios. Então vou aceitar essa minha teoria (risos).

Por falar em certezas. Tenho tentado me esvaziar delas. Elas que busquei por muitos anos, achando que me seguravam firmes, hoje tento não pensar muito. Com pouco tempo a vida fez seus meios de me mostrar que se tem algo que inexiste é esse trem.

Tem muita coisa que tenho pensado em escrever.

Sobre sentires, medos, alegrias, ansiedades.

Não sei muito bem por onde começar.

Mas certa de que não há um modo certo. 

Hoje queria falar do tempo.

Aquele do relógio mesmo.

Já ouvi de diversas pessoas aquele velho jargão: “tudo tem seu tempo”.

Quando adolescente, internada naquele hospital eu pensava – vocês dizem isso pois não sabem o que é passar dias e noites olhando para este relógio sem saber se terei tempo de viver tudo que sonhei. Imagina os sonhos e idealizações de um sol em peixes! Mas a verdade é que, quanto mais esse tal tempo se mostra, mais entendo o que aquelas palavras prontas tentavam dizer. No budismo engajado diz-se muito em experienciar. Talvez agora, entendendo as palavras com meu corpo, eu possa recebê-las com mais generosidade.

Sabe o tal relógio? Ele foi retirado do tal prédio em outubro de 2019.

Talvez não fosse mais tão necessário numa modernidade hiperconectada.

Talvez fosse a possibilidade de se guiar pelo céu.

E quando alguém perguntar, deve ser algo em torno de meio dia.

Afinal, o que é o tempo além de mais uma das nossas certezas inventadas?

Uma vez uma amiga me contou que viveu 6 meses em uma comunidade próxima a Natal-RN. Vivia com pouco, quase nada. Foram tempos mágicos e de muita presença. Com o tempo ela foi entendendo de como precisava de realmente pouco para se viver. Quando voltou a Belo Horizonte, ainda no trajeto do aeroporto para a casa, viu um outdoor com uma propaganda de um relógio. No mesmo instante, colocou as mãos no pulso e pensou: “Preciso de um relógio”. Essa história segue na minha mente. 

Para não alongar muito. Gostaria de celebrar este novo tempo com o desejo de ter menos horas contadas e mais estrelas sentidas.

Aguardo notícias do sol da Bahia.

Com carinho, 

Amanda

00 • Uma Manga 🥭


eu tenho uma tia chamada Socorro. Na verdade, ela é tia da minha mãe. Irmã do meu avô Antônio. Tem uma família grande, com muitos filhos, netos e bisnetos. Uma das netas é a Amanda. E tem um tempo que quero contar essa história pra ela:

quando a Tia Socorro morreu, eu morava no Rio, mas eu estava visitando a família em Belo Horizonte. A notícia chegou e nos juntamos eu, minha mãe, minhas outras duas tias, para ir até o velório. Aquela era a primeira vez que eu presenciava a morte depois de ter me reconectado com minha espiritualidade. Quando cheguei no cemitério de Oliveira naquela tarde, senti uma grande vontade de tirar os sapatos. Pela primeira vez me fez sentido estar naquele ritual: me conectei com a terra e honrei a Tia Socorro pelo que ela compartilhou com o meu avô, pelo que ela representa pra minha mãe, pela minha ancestralidade. Quando olhei pra baixo, logo na frente dos meus pés descalços, estava uma manga.

olhei pra cima e não tinha nenhuma mangueira. Mas existia uma manga linda, verde com as ~bochechas rosadas nos meus pés. Peguei a manga aceitando a oferta. Pensei sobre a vida-morte-vida. Como o corpo que era entregue naquele momento de volta a terra seguia o passo a passo do plantio de uma semente. Mais tarde fui descobrir que a primeira mangueira nasceu das cinzas de uma princesa, segundo uma lenda indiana que faz da manga o símbolo do amor eterno.

quando voltei para o carro com a manga em mãos, desespero de mãe e tias. Questionavam a manga do cemitério e quase me fizeram ficar pra trás na volta da viagem. Um tabu terrível com o que é relacionado à morte. Quando na casa da minha avó, ao saber que eu tinha pegado uma manga do chão durante o enterro, vovó buscou uma manga da sua fruteira — que me parecia a maior manga que já vi nessa vida — estendeu na minha frente e disse que daquela eu poderia comer.

essa semana li um texto da Líryan em que ela dizia sobre estarmos frequentemente “negociando com nossos colonizadores”, o que me remete à minha manga — o meu desejo, minha cultura, minha experiência — em escambo pela manga gorda (e cheia de agrotóxicos) — o padrão colonial, a cultura hegemônica patriarcal branca. Naquele dia, ao negar a manga da fruteira e comer a manga do cemitério, eu disse que tenho outras crenças e já não tenho comigo o tabu cristão da morte, carregado por toda a minha família. Hoje sei que muitas outras coisas foram simbolicamente negadas naquele gesto.

eu tou me mudando pra Bahia, espero comer muitos frutos do pé olhando para o mar de baleias. Amanda e eu nunca tivemos a chance de nos aproximar no contexto familiar, mas, assim como a manga, ela me apareceu em outros terrenos por onde eu andava descalça na vida. Agora ela quem mora no meu apartamento, a gente troca correspondências e mais um monte de ideias que me fazem querer honrar ainda mais a avó, tia da minha mãe, irmã do meu avô.

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