• 20.06.21
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Pedro Morais quer o Centro cheio de JKs

Quando chegou ao Conjunto Governador Kubitschek, conhecido como edifício JK, o então estudante da Escola de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Pedro Henrique Almeida de Morais, pela primeira vez, teria a experiência de morar sozinho.

No final dos anos 90, vindo de uma moradia compartilhada com outros estudantes, as populares repúblicas, ele trazia na bagagem não apenas pertences como também expectativas pelo que aquela mudança significaria para si. Todavia, não poderia imaginar quão decisivo se tornaria o prédio para a sua trajetória acadêmica.

“Quando cheguei no JK, percebi uma qualidade de vida, não só dos espaços, porque a qualidade dos apartamentos é inquestionável, mas da privacidade.”

Pedro projetou e edificou os pilares de sua história em um dos 1.086 apartamentos de fachadas de vidro. Um lugar paradoxalmente garantidor da privacidade de seus moradores, como ele mesmo reconhece. Foram 15 anos vivendo no JK. Entrou como locatário e, posteriormente, tornou-se proprietário de uma unidade residencial tipo 5 – a maior do conjunto. O arquiteto desconfia que a unidade que adquiriu teria sido feita para Juscelino Kubitschek (1902-1976) – que, como prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas Gerais e Presidente da Repúblico, sempre se mostrou um entusiasta do Modernismo, se cercando de expoentes desse amplo movimento cultural, entre eles Oscar Niemeyer (1907-2012).

A desconfiança de Pedro é fundamentada na constatação de detalhes construtivos exclusivos no espaço, como as paredes de lambri – um ornamento aplicado sobre painel de madeira igual ao encontrado nos corredores dos duplex do edifício. Um outro detalhe a compor a suposta história é o fato de a primeira proprietária ter sido uma Miss Brasília da década de 50: talvez o apartamento tenha sido um cala boca para uma possível amante?

“Um pouco da ideia da minha tese é trazer os edifícios de larga escala de volta – principalmente em áreas centrais.”

Elucubrações à parte, certo é que a passagem pelo JK deixou marcas indeléveis ao arquiteto, que hoje é docente na UFMG e na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), além de possuir escritório próprio instalado na capital mineira. Aliás, mestrado e doutorado, ambos pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG, foram trilhados enquanto vivia no edifício.

Pedro Morais conversou com o Viva JK sobre sua experiência enquanto morador de um dos mais icônicos conjuntos habitacionais de Belo Horizonte. Na entrevista, ele observa como “a escala do edifício traz para dentro dele dinâmicas próprias do espaço urbano” e também tece críticas a ausência de uma legislação que dê conta das complexidades intrínsecas à governança de um espaço que congrega mais de 4.000 moradores – “o JK é  um condomínio de 1.086 apartamentos sob a mesma lei de condomínios que rege um edifício com 12 apartamentos”.

O estudioso ainda faz apontamentos sobre ressonâncias da Ditadura Militar (1964-1985) na lógica condominial, indica o cruzamento de influência de diferentes modelos arquitetônicos na edificação e sublinha que o prédio parece ter sido construído para além de seu tempo, dado que, quando foi projetado, em 1951, “poderia abrigar 1% da população urbana”: “É claro que isso é desproporcional e era muito otimismo imaginar que daria certo na época”, diz, complementando que, hoje, no entanto, “faz sentido um edifício que tenha habitação na torre e comércio e serviços na base, com usos de lazer, coletivos e culturais”.

Viva JK: O JK foi objeto de sua pesquisa acadêmica e você morou aqui por quase 15 anos. Foi sua investigação que te trouxe para dentro do prédio? 

Pedro Morais: Não, pelo contrário. Foi a vida no JK que me levou à pesquisa. Havia um contraste muito grande entre a qualidade de vida que encontrei aí e a imagem que se tem desses edifícios na crítica da arquitetura moderna. Dentro da historiografia, esse tipo de moradia acabou virando uma coisa que não deveria se repetir, uma tipologia que gerava guetos de exclusão e situações arquitetônicas complicadíssimas. Quando cheguei no JK, percebi uma qualidade de vida, não só dos espaços, porque a qualidade dos apartamentos é inquestionável, mas da privacidade. É uma coisa contraintuitiva. Quando imaginamos tanta gente morando num edifício deste tamanho, imaginamos excesso de convívio, um excesso de “saber da vida dos outros”, mas é justamente o contrário. O nível de contato social é o que cada um determina. A escala do edifício traz para dentro dinâmicas próprias do espaço urbano. Então, no JK, se você sai no corredor e encontra um desconhecido completo, não acha isso estranho como acharia num edifício menor. Foi esse tipo de constatação que despertou meu interesse. Comecei a pesquisar e vi que o material era muito escasso, justamente por ser uma tipologia banida da cultura e da prática de arquitetura e urbanismo no mundo. Identifiquei essa lacuna de pesquisa e, viajando pela América Latina inteira, pude comparar as condições de vida em edifícios do porte do JK, em diferentes países.

No Brasil, tanto o JK quanto o Copan passaram por um período de degradação. Há algo em comum no modelo que levou a esse resultado?

Pelo menos no Brasil, não existe um formato jurídico que contemple a complexidade de um edifício assim. O JK é  um condomínio de 1.086 apartamentos  sob a mesma lei de condomínios que rege um edifício com 12 apartamentos. Não existem leis que garantam uma governança transparente. Seria interessante ter uma representatividade escalonada. Que cada pavimento elegesse um representante e esses representantes fizessem assembleias entre si. Tentar reunir 1.000 pessoas numa reunião de condomínio é absurdo. É claro que vai dar errado. 

O estilo de administração que temos aqui se repete em outros países?

Coisa parecida, só vi dentro de “O Processo”, de (Franz) Kafka (1883-1924).  A gestão é um gargalo em edifícios desse porte, né? Eles têm méritos que são inegáveis. Conseguem, bem ou mal, manter o edifício organizado e limpo, o que não é fácil. É recorrente em outros países que pessoas assumam o pepino da administração e acabem se mantendo ali, ano após ano. Se afeiçoam de alguma forma por aquele poder. Como a gestão é muito complexa, e justamente por ser tão difícil tomar decisões em assembleia, às vezes há arbitrariedade. 

Como foi a administração do JK nos primeiros anos?

Existem vestígios do regime militar na forma em que o JK foi conduzido, desde a inauguração até hoje. O Estado de Minas Gerais precisou intervir para que o edifício fosse habitado e assumiu a gestão do condomínio por meio do pessoal da Secretaria de Segurança Pública.

O JK deveria ter ficado pronto em 1956, mas só foi habitado nos anos 70. A conta da incorporação não fechava, aquilo encalhou e foi um mico de mercado. Quando o Estado interveio para que o condomínio fosse ocupado, ainda tinha muitas unidades sem vender.  Compraram apartamentos através do Ipsemg, refinanciaram e cederam a funcionários do Estado. Estimulou-se que policiais fossem morar no edifício, até como uma forma de controle social.

croqui do apartamento duplex. Dois cômodos opostos e desnivelados e unidos por uma escada
croqui do apartamento semi-duplex retirado do caderno de vendas do JK, de 1952

O projeto do JK trouxe elementos de arquitetura novos na época?

Um elemento ainda novo naquele momento foi o sistema de fachadas de vidro. Nos primeiros croquis do JK, a gente percebe que a fachada foi imaginada como nas “Unidades de Habitação,” do Le Corbusier (arquiteto, urbanista, escultor e pintor de origem suíça e naturalizado francês em 1930), em “colmeia de abelha”. O fechamento do apartamento seria recuado, com varandas que garantissem sombreamento. 

No semi-duplex, a gente vê uma varandinha de cada lado. Isso porque foi um croqui requentado do projeto do Quitandinha, um hotel que nunca foi construído em Petrópolis. Quando Niemeyer projetou o Quitandinha, ainda havia em mente um tratamento de fachada como o do Le Corbusier. Só que com a virada de influência do modelo europeu para o americano, veio o curtain wall, a fachada envidraçada, como no prédio da ONU (Organização das Nações Unidas). Acontece então essa mudança no projeto do JK e a fachada norte vira uma estufa no inverno. Se existisse uma varandinha de um metro ali, a situação de conforto ambiental nesses apartamentos seria infinitamente melhor. Foi uma inovação, mas acabou sendo maléfica no nosso clima. 

Outra novidade foi a implantação das torres e ocupação do terreno. Belo Horizonte foi pensada para ter uma ocupação meio Paris ou Barcelona, de quadras com até seis pavimentos. Depois mudou-se para o modelo de Nova York, com edifício verticais colados ombro a ombro. Por último, vem o modelo Moderno, do bloco isolado. No centro da cidade, a gente vê esse Frankenstein, fruto de mudanças de legislação. 

O JK, nesse sentido, acaba sendo inovador porque já trabalha com bloco isolado num momento em que se construía noutros modelos.  Então existem os blocos isolados, que geram um distanciamento muito agradável entre vizinhos, sobre plataformas de base, que conformam o espaço da quadra e dão uso mais intenso pro nível da calçada. É o que a gente chama hoje de fachada ativa. Nos novos planos diretores, a ideia é ativar pela troca entre o espaço público o espaço privado. No JK, isso é possível.

Pedro, você chegou fazer um projeto de requalificação para as áreas ociosas do JK quando morou aqui. O que poderia ser feito?

Quando elaborei o projeto, em 2005, apresentei em seminários, ao pessoal do patrimônio e tentei fazer uma costura política envolvendo o condomínio, a prefeitura e o Estado. Mas não consegui, na época, vontade política e disposição para lidar com o vespeiro que é isso daí. O que eu vi foi que todas as entidades públicas têm uma preguiça imensa de lidar com o JK, porque sabem das dificuldades, sabem que todo tipo de iniciativa e proposta vai ser emperrada. 

Dos pontos principais do projeto, o mais simples seria articular para que o Conexão Aeroporto chegasse ao Terminal Turístico. Hoje, o Terminal não tem um uso definido, virou aquela história de ônibus de excursão ao Paraguai que parte dali sem uma regulamentação adequada. Colocar o ônibus de Confins no Terminal Turístico do JK seria uma forma de acolher quem chega a BH com mais infraestrutura e, ao mesmo tempo, ativar aquele comércio de forma natural, com movimento 24 horas. 

O JK deu as respostas para problemas de habitação e uso da cidade que enfrentamos hoje?

Uma das hipóteses centrais da minha pesquisa é que estes edifícios não foram pensados para o momento em que foram feitos. Começam a acontecer aqui após a Segunda Guerra, quando a influência cultural francesa e a influência econômica inglesa estavam sendo substituídas pela norte-americana. Foram edificados com uma certa influência cruzada. A origem europeia desse tipo de habitação – com Le Corbusier e os soviéticos – é uma coisa meio socialista, de resolver, com qualidade, a moradia do trabalhador na cidade. Dos norte-americanos, vem a ideia da verticalização e multiplicação do solo urbano do ponto de vista especulativo. 

Tudo isso chega num momento em que a América Latina ainda não precisava de uma verticalização dessa escala e, a meu ver, acaba sendo executado de forma precipitada. Em Belo Horizonte, isso é patente: o JK poderia abrigar 1% da população urbana quando ele foi pensado, em 1951.  É claro que isso é desproporcional e era muito otimismo imaginar que daria certo na época. 

Mas são edifícios muito pertinentes na cidades em que a gente vive agora. Hoje faz sentido um edifício que tenha habitação na torre e comércio e serviços na base, com usos de lazer, coletivos e culturais. 

Inclusive, um pouco da ideia da minha tese é trazer os edifícios de larga escala de volta – principalmente em áreas centrais. Em Belo Horizonte, aquela área entre entre Raul Soares a Rodoviária é o maior deserto de noite, é perigosa. A inserção de meia dúzia de JKs naquele trecho seria o catalisador da melhoria daqueles espaços e de atividades durante a noite. Poderiam ser uma ferramenta de ativação urbana, principalmente em nossas metrópoles latino-americanas, que são descontínuas, fragmentadas, com bolsões vazios no meio de zonas mais densas.

Quer conhecer mais do trabalho do Pedro? Acompanhe seu perfil no Academia.edu

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