• 22.10.21
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Um Vráááá na Raulzona


A praça Raul Soares e região adjacente é, hoje, reconhecidamente um importante espaço de convivência e sociabilidade da população LGBTQIA+ em Belo Horizonte. Mas nem sempre foi assim. 

“Ao longo da década de 1950, esse foi um lugar em intensa disputa, sendo frequentado pela elite que vivia na capital e torcia o nariz para aqueles que eram chamados na época de invertidos e de anormais, que começaram a frequentar esse espaço. Para expulsar esse grupo, há relatos de diversas operações policiais de caráter higienista, estendendo-se aos anos 1960. Nesses documentos, as pessoas LGBTQIA+ são representadas como ameaça à cidade, postas ao lado de criminosos”, explica o pesquisador Luiz Morando, autor do livro “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”.

Contudo, apesar dos esforços no sentido de expulsar dali os que eram lidos socialmente como indesejados e perigosos, não houve política de repressão que impedisse que a Raul Soares fosse sendo paulatinamente ocupada pela comunidade queer que vive na capital mineira.

Com o passar dos anos, a partir dos movimentos de luta por reconhecimento e por direitos, que tiveram por consequência o avançar das pautas de gênero e sexualidade, as pessoas LGBTQIA+ não só fincaram raízes na Raul Soares e região adjacente como também se viu empoderada. 

Logo, no lugar de uma representação negativa, as identidades contidas na sigla passaram a dizer de si com orgulho – em oposição à forma como essas pessoas eram apresentadas na maioria dos artigos e notícias até meados do final do século XX.

A projeção que o Coletivo Viva JK faz, à convite do CURA – Circuito Urbano de Arte, relembra a forma como a Raul Soares foi e é um espaço em disputa, que hoje se estabeleceu como um importante território de convivência LGBTQIA+. 

Uma história que entendemos que deve ser contada, pois é necessário lembrar do combativo passado de uma militância que não se deixou abater pelo preconceito. Acreditamos ainda ser preciso compreender de que lutas nós e a nossa cidade somos forjados para que o passado opressivo não se repita – nem sequer como farsa.

A projeção

Um videoclipe, dirigido pelos videoartistas Eder Santos e Barão Fonseca, vai dar vida a fotografias de mulheres trans e travestis, que, orgulhosas de ser quem são, posaram para as lentes do fotógrafo Lucas Ávila. Ou se autorregistraram, como no caso de fotografias da militante Anyky Lima, uma das principais vozes da militância travesti e transexual em Minas Gerais que morreu em março deste ano e que agora será homenageada. “Anyky sobreviveu a violência da família, sobreviveu a violência do estado. Lutou pelos direitos das pessoas trans, para as pessoas serem quem elas querem ser. Merece sempre ser lembrada”, avalia o artista.

Assim como Anyky, todas as outras pessoas fotografadas representam ou são descendentes do ancestral ativismo por reconhecimento da própria identidade, sendo entidades da comunidade queer belo-horizontina.

O trabalho usa também cenas do videoclipe “Duas Pessoas”, de Aldrin Gandra e dirigido por Barão Fonseca, e cenas de uma batalha de Vogue gravada pelo cineasta Leonardo Barcelos em 2018 na boate Matriz, no edifício JK.

Tais escolhas não ocorrem ao acaso: ambas as gravações são alegóricas da mudança da maneira como as pessoas LGBTQIA+ são representadas. O Vogue, por exemplo, é um estilo de dança pautado por performances que, entre outras coisas, comunicam o orgulho queer.

A modalidade surgiu em Harlen, em Nova Iorque, e, no Brasil, fez de BH sua capital. Tetê Moreira, organizadora do BH Vogue Fever, recebeu a notícia da ação com entusiasmo. “O vogue te convida a se sentir bem com sua identidade, seu corpo e origens. Te mostra suas potências. E, por isso, ele te faz sentir muito orgulho e é tão importante para a comunidade queer, Preta, trans, periférica”.

Além do videoclipe, a projeção trará um breve retrospecto histórico. Através de manchetes e trechos de reportagens da década de 60, vamos ver como a praça Raul Soares passou a ser disputada: por um lado, uma sociedade que desejava reprimir a população LGBTQIA+. De outro, essa população, especialmente mulheres trans e travestis, que já frequentavam a região. O trabalho de diagramação das notícias será feito pelo artista gráfico Fred Birchal, apaixonado por arquitetura e urbanismo, morador do JK desde 2019. 

SERVIÇO:

O que: Viva JK projeta um vráááá na Raulzona

Quando: Sábado, 23 de outubro de 2021, às 19h.

Onde: na empena da torre B do edifício JK, e nas redes sociais do Viva JK e do CURA.

Quanto: gratuito.


O que dizia a imprensa?

Os textos a seguir, colhidos de jornais mineiros da década de 60, fazem parte da pesquisa de Luiz Morando, autor de “Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte”.

25/06/1960, sábado

Diário da Tarde, ano XXVII, n. 19.613, 1º Caderno, p. 8

Nova ofensiva contra os jotatês da cidade

Ocupada pela polícia a Praça Raul Soares!

(…)

“Desfile” proibido

A Delegacia Especializada de Costumes vai proibir o desfile de homossexuais, denunciado em reportagem do Diário da Tarde. Segundo fomos informados, a ronda da DEC foi orientada no sentido de acabar com as reuniões que tipos estranhos vinham promovendo na calada da noite, nas alamedas do Parque Municipal, preparando-se para o mais extravagante desfile que já se teve notícia na cidade. Por outro lado, o delegado Mário Pinto Correia vai inteirar-se detalhadamente da reunião de âmbito nacional, para evitar o atentado que pretendem levar a efeito contra os costumes e o bom nome da cidade.

As autoridades continuam impressionadas com os fatos relatados pelas reportagens deste jornal, mostrando a situação e o procedimento dos delinquentes juvenis que, aliados a elementos nocivos, vêm provocando uma verdadeira inversão de costumes.

Uma ação conjunta, visando a acabar com os focos denunciados como utilizados pelos que zombam da lei e da moral, está sendo estudada, para breve execução.

(…)

16/06/1961, 6ª-feira

Estado de Minas, ano XXXIV, n. 14.069, 2º Caderno, p. 8

Últimas do cartaz policial – WS

Domingo próximo, por determinação do secretário de Segurança Pública, elementos da Polícia (Guarda Civil e BPO) estarão em ação no Parque Municipal e praça Raul Soares para pôr cobro a abusos de malandros e maus elementos que atentam contra a moral e os costumes. Policiais agirão com a maior energia. Por outro lado, apuramos que o sr. Faria Tavares vai entrar em entendimento com o prefeito para instalar no recinto do Parque Municipal um posto policial.

Folha de Minas, ano XXVI, n. 8.297, p. 6

Polícia agirá contra transviados e travestis na Praça Raul Soares e Parque, anuncia Secretário

Domingo próximo, o Parque Municipal e a Praça Raul Soares deverão sofrer completo saneamento por parte das autoridades policiais da Capital. Esta medida foi levada ao conhecimento de Folha de Minas por intermédio do secretário de Segurança Pública, senhor José Faria Tavares.

Travestis

Esta medida do titular da Pasta de Segurança Pública se deve às constantes reclamações por parte de moradores de Belo Horizonte com referência aos escândalos promovidos por travestis no interior do Parque Municipal.

Além dos pederastas que frequentam aquele local, principalmente na parte da noite, ainda existem casais escandalosos, que procuram aquele logradouro público para fins imorais e mulheres de vida irregular que ali transitam, à procura de fregueses, e sempre causam espetáculo deprimente.

(…)

As primeiras medidas para o saneamento da cidade serão tomadas nestes dois logradouros públicos, estendendo-se, a seguir, a outros locais, como a Praça da Estação, avenida Afonso Pena, etc.

(…)

06/04/1963, sábado

Diário de Minas, ano XIV, n. 4.108, p. 8

Raul Soares perdeu com má fama a poesia de sua fonte luminosa

A praça Raul Soares, centro geográfico de Belo Horizonte e que tem a fonte luminosa mais bonita da cidade, já foi o melhor lugar para um passeio à noite, mas hoje não recebe mais a visita de meninas bonitas da sociedade, por causa dos que agora são os seus donos: soldados do Exército, mulheres de má vida e “travestis” que ocupam seus bancos depois das 21 horas e lá passam a noite falando palavrões, dançando balé e encenando striptease, mesmo quando ainda há movimento nas ruas e estão acesas as janelas dos apartamentos vizinhos.

Policiamento a praça não tem e quando há uma briga entre os transviados ou mulheres de má vida dificilmente a Radiopatrulha consegue prender alguém, porque a sirene ou o motor de seu carro anuncia sua chegada e o ambiente volta ao normal. As famílias que antigamente se orgulhavam de morar perto da Raul Soares chegaram à conclusão de que não adianta mais reclamar e preferem entrar cedo para dentro de casa, sem ligar para o que se passa a 50 metros de sua porta.

Quando a fonte era bonita

(Quadro em que a fonte luminosa funcionava e atraía namorados e “até moças de sociedade”)

Começou com as lambretas

A praça ficou desmoralizada quando chegaram a Belo Horizonte as primeiras lambretas. Os filhos de papais ricos compraram logo as suas, para imitar os transviados de Copacabana, que já se tinham apaixonado pela velocidade. (…) Aos poucos formaram-se os grupos de transviados. (…)

A praça dos transviados

Aos poucos, o ambiente da Raul Soares foi piorando. Ela passou a ser conhecida como a praça dos transviados, por causa do seu número sempre crescendo e das confusões que surgiam todos os dias. (…) Os transviados passaram depois a fumar maconha, como simples diversão, já que as moças desapareciam da praça. Os casos mais graves passaram da polícia para os jornais e a praça Raul Soares foi ficando cada dia com mais fama.

Quem são os seus donos

Os donos da Raul Soares hoje são outros. Os transviados não aparecem mais ou se reduzem a meia dúzia que chega de carro ou de lambreta. Quem vai passear agora na praça são as mulheres de má vida, que chegam sempre depois das 21 horas. (…)

De madrugada vem o pior

O pior acontece na praça, depois da meia-noite. Quando acaba o movimento das ruas e se apagam as luzes dos apartamentos vizinhos os “travestis” tomam conta da Raul Soares. Chegam em grupos de cinco ou seis e às vezes são mais numerosos. Se ninguém telefona para a radiopatrulha, eles são os donos da praça e lá ficam até amanhecer, quando ônibus e lotações aumentam de novo. Nem sempre são os mesmos “mocinhos” que estão na Raul Soares, mas fazem todos a mesma coisa: os mais tímidos dançam balé e desfilam no jardim, como se fosse concurso de beleza, e outros encenam até striptease para os companheiros, correndo seminus pelas ruas.

Polícia não dá notícia

As famílias que moram perto da Raul Soares já desanimaram de fazê-la voltar ao que era. Às vezes telefonam para a polícia, comunicando uma briga entre mulheres ou reclamando do espetáculo dos “travestis”. (…) De vez em quando, os moradores saem de casa para acabar com as cenas que veem na Raul Soares, mas nem sempre adianta falar. (…)

Uma igreja e duas boates

Há menos de 10 anos, a praça Raul Soares só tinha prédios de três a cinco andares. Hoje tem sete edifícios de 10 andares e é nela que está o conjunto JK que, com 34 andares, é o maior de Belo Horizonte. Só nele poderão morar cerca de 5.000 pessoas, quando for terminado. O que predomina na praça são os bares e boates, duas funcionando e duas em construção.

23/07/1965, 6ª-feira

Diário da Tarde, ano XXXV, n. 22.633, p. 8

Só furtava de travestis na praça Raul Soares

José Maria dos Santos dedicou-se, por algum tempo, à prática de assaltos contra transeuntes na praça Raul Soares. Finalmente, a Justiça decretou sua prisão preventiva e o ladrão foi preso pelo 8º Distrito Policial. Entrevistado pelo Diário da Tarde, o assaltante revelou em detalhes sua ação. Afirma que somente agia contra travestis que tinham, naquela época, seu ‘ponto’ naquelas imediações, de madrugada. O acusado explicou que tinha verdadeira aversão pelo “grupinho” que fazia “chacrinha” na praça Raul Soares e resolveu “enxotar” seus componentes à sua maneira… Acabou sendo preso e processado para em seguida acabar com prisão preventiva decretada, apesar de suas alegações de que teve uma “ação profundamente moralizadora”.

05/02/1965, 6ª-feira

Diário de Minas, ano XVI, n. 4.648, 1º Caderno, p. 8

Polícia prende 19 moças transviadas

Vinte e dois transviados e anormais – 19 moças e 3 rapazes – foram presos na Praça Raul Soares por uma viatura da Polícia Militar, que atendeu a um pedido do delegado de Costumes e os recolheu ao xadrez, para serem interrogados segunda-feira.

Entre os vinte e dois transviados presos, somente havia três homens que foram levados para o xadrez, devendo ser submetidos a interrogatório, também, na Delegacia de Repressão à Vadiagem sobre suas atividades.

Os presos são: Carlos Alberto Guerra, de 19 anos, (…) Délcio Lima Mendes, 18 anos, Luís Roberto de Alcântara, de 26 anos, (…).

A prisão dos transviados foi feita pelo sargento José Machado II, cabo Ari e por uma dupla de soldados do BG, que vêm colaborando com a Delegacia de Costumes na realização das blitz (sic) na Praça Raul Soares, Parque Municipal e em bairros e vilas de Belo Horizonte.

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