“…Horizonte perdido no meio da selva
Ruas da Cidade, Lô Borges
Cresceu o arraial, arraial…”
Quando pensamos na palavra horizonte, um dos primeiros significados que nos ocorre é: campo de visibilidade. Quanto mais distante e mais alto, maior a amplitude desse campo. Imagine-se morando no 30º andar de um edifício, no centro de uma grande cidade – para além do conceito geográfico, símbolo complexo da existência, como na obra de Italo Calvino?
Do alto de uma torre de concreto e vidro, quantas imagens, testemunhos e horizontes a vista alcança ou a mente projeta? Quantas vivências, trocas e histórias estariam contidas ali? A torre revela-se bússola ou um grande farol e, ao mesmo tempo que afeta, é afetada por tudo ao seu redor e interior – elementos humanos, não humanos e materiais.
Este cenário nos remete ao romance “Condomínio Solidão”, do belorizontino Jorge Fernando dos Santos, ex-morador do Conjunto Governador Kubitschek, popularmente conhecido como edifício JK, referência arquitetônica da capital mineira e terreno fértil para a literatura, desperta curiosidades, evoca mitos e guarda muitas memórias.
“Mesmo num livro de ficção, ela está presente, pois o escritor geralmente acrescenta dados reais à fantasia literária. Aquilo que chamamos de memória emotiva é fundamental em todos os ramos artísticos. Sem ela, eu acho que a arte seria impossível.”
O condomínio, formado pelos blocos A – 23 andares -, perpendicular ao B – 36 andares -, foi a casa do escritor entre os anos de 2011 e 2012. E como não se mora no JK impunemente, Jorge Fernando fez da sua vivência inspiração para o livro.
“O JK com seus milhares de moradores de perfis dos mais variados me aguçou a imaginação de escritor e praticamente me ajudou a recomeçar a vida.”
Uma vida que começou no bairro Santo André, em 23 de abril de 1956, dia do São Jorge – o que explica o nome de batismo do escritor. Filho de Mário dos Santos, marceneiro que tornou-se funcionário público no antigo IAPI e militante do antigo PTB, e Maria Tereza Silva Santos, dona de casa, Jorge Fernando diz que, embora só tivessem o curso primário, os pais o incentivaram nas primeiras leituras. Seguramente, estão orgulhosos do filho que formou-se em jornalismo, trabalhou como repórter, cronista, editor, revelou-se compositor de grande talento e tem 46 livros publicados, em gêneros diversos.
Publicações que renderam bons frutos. Citando alguns: “Palmeira seca”, recebeu o Prêmio Guimarães Rosa de romance, em 1989; “Alguém que tem que ficar no gol”, foi finalista do Prêmio Jabuti, em 2014; “Vandré – o homem que disse não”, finalista do Prêmio APCA, em 2015.
Jorge Fernando dos Santos compartilhou um pouco da sua história pessoal e profissional com o Viva JK – a descoberta da vocação de escritor, o envolvimento com a música, a experiência de morar no JK após a separação e alguns detalhes do livro “Condomínio Solidão”, publicado em 2020 pela Caravana Grupo Editorial.
Dizem que o nome tem influência sobre a nossa vida. Você acredita?
Acho que o nome é um mantra que mexe com o nosso inconsciente. Jorge é de origem grega e significa o homem que trabalha a terra. Ou seja, significa agricultor. Eu sempre gostei de plantar, desde muito criança. Adoro agricultura e jardinagem.
Tem escritores, jornalistas e/ou músicos na família?
Digamos que eu seja o único intelectual da família. No entanto, meu pai dizia que o avô dele, que era português, escrevia versos. Já o meu avô paterno, que era pedreiro de profissão, foi músico na juventude, chegando mesmo a fazer cavaquinhos e violões. Tocou num grupo de choro em BH. Por parte de mãe, tive um tio que tocava bandolim e era membro da banda de música do Corpo de Bombeiros. Hoje, minha filha escreve e compõe melhor que eu. Ela é professora, mestre em Literatura pela Faculdade de Letras da UFMG.
“Quando eu tinha 11 ou 12 anos, li o Meu Pé de Laranja Lima, do José Mauro de Vasconcelos. Quando li a biografia do autor na orelha ou na contracapa, resolvi me tornar escritor.”
Você atua em três áreas que exigem muito estudo, entrega e persistência.
Quando criança, eu queria ser pintor ou desenhista. Tinha muita facilidade para inventar histórias e isso foi me desviando para o universo literário. Quando eu tinha 11 ou 12 anos, li o Meu Pé de Laranja Lima, do José Mauro de Vasconcelos. Quando li a biografia do autor na orelha ou na contracapa, resolvi me tornar escritor. Dos 13 aos 15 anos, venci três concursos de poesia no Colégio Anchieta e isso definiu o meu destino. Nessa época, eu assistia a musicais na TV, inclusive festivais de música que revelaram compositores como Chico, Caetano, Vandré, Mutantes e tantos outros. Aquilo, de certa forma, acendeu minha vocação para compor. Quando ouvir Alegria, Alegria pela primeira vez, virei fã do Caetano e resolvi imitá-lo. Mas só fui compor minha primeira música aos 19 anos. Um choro chamado Renascendo, em parceria com um maestro do Clube dos Oficiais da PM. Cheguei a participar de festivais em Sete Lagoas, Nova Lima e no Sindicato dos Bancários. Fui finalista em todos eles, e também no Ponteio, festival estudantil que aconteceu no antigo DCE da Federal. Também fiz apresentações em bares e até na TV local. O jornalismo veio por consequência. Eu queria estudar arquitetura, mas venci um concurso no antigo Jornal de Minas com um texto sobre Geraldo Vandré. Fiquei amigo do colunista Gilberto Gonçalves, e passei a colaborar na coluna de música que ele assinava. Foi por influência dele que fiz o vestibular de Comunicação na antiga FAFI, hoje Uni-BH. Desde de logo comecei a colaborar em vários jornais e virei colunista de teatro e cinema no Estado de Minas, onde depois fui admitido na função de repórter do caderno de Cultura, chegando a editor. Eu ralava o dia todo na redação e, à noite, ficava até tarde me dedicando à literatura e à composição musical. Batalhei muito pra conciliar jornalismo, literatura e música.
A tessitura de memórias com fios históricos é uma das formas como opera a literatura. Em “Palmeira seca”, por exemplo, o velho Durval rememora o passado, a relação entre ele e a velha palmeira, raízes de uma tradição que se inicia à época dos bandeirantes, e por aí vai…
A memória é fundamental para a literatura. Aliás, não só para a literatura, como também para as pessoas e a própria História humana, não é? Graças à memória é possível aprender com as nossas experiências e tentar não repetir os erros que cometemos. A memória é o principal fio com que se tece a literatura. Mesmo num livro de ficção, ela está presente, pois o escritor geralmente acrescenta dados reais à fantasia literária. Aquilo que chamamos de memória emotiva é fundamental em todos os ramos artísticos. Sem ela, eu acho que a arte seria impossível.
“O livro é fruto de tudo o que eu estava passando naquele momento e também da minha observação sobre o lugar onde estava morando.”
Em “Condomínio Solidão”, a memória – que emerge da multiplicidade de vozes, testemunhos e fabulações – permeia toda a obra, é personagem.
Logo que me separei da mãe da minha filha, fui morar no JK. Em pouco mais de um ano, residi nos dois blocos. Era uma experiência nova pra mim. Eu nunca tinha morado sozinho e nunca num apartamento. Sempre morei em casa com jardim, cachorro e galinheiro. Eu também estava vivendo uma relação complicada com uma mulher pela qual me apaixonei. Estava bebendo muito e a um passo da depressão. Escrever Condomínio Solidão foi quase uma terapia. O livro é fruto de tudo o que eu estava passando naquele momento e também da minha observação sobre o lugar onde estava morando. O livro tem dezenas de personagens, mas eu acho que, no final das contas, o Conjunto JK é o personagem principal, seus milhares de moradores de perfis variados me aguçou a imaginação de escritor e praticamente me ajudou a recomeçar a vida.
Os capítulos ao mesmo tempo que são janelas que compõem a obra são retalhos de uma colcha que vai ganhando forma no decorrer da leitura. Nos parece um estilo e um recurso para atrair o leitor, com um detalhe: deixa sempre um fio solto.
Exatamente. São narrativas fragmentadas como a própria vida contemporânea, na qual tudo parece inacabado, inclusive os diálogos que mantemos através das redes sociais. Cada pessoa na sua janela virtual, vislumbrando o mundo sem de fato vivenciá-lo. Falando sobre coisas das quais não entende e se deixando levar por intrigas e polêmicas que, na maioria das vezes, só servem para nos dividir e distanciar. Como autor, eu sempre tento deixar uma parte das conclusões por conta dos leitores. É uma forma democrática de segurar o leitor, tornando-o uma espécie de cúmplice ou testemunha daquilo que se narra. Penso que a palavra final nunca deve ser do autor, mas deve resultar do seu ponto de vista somado ao ponto de vista do leitor. Afinal, o escritor escreve um livro que será interpretado de variadas formas por diferentes pessoas. Um mesmo leitor pode tirar conclusões diferentes a cada releitura do livro. Por ser subjetiva, a literatura funciona como caleidoscópio. Quando o autor tenta amarrar tudo, buscando controlar a narrativa, ele se arrisca a construir um texto discursivo e não uma obra literária propriamente dita. Em Condomínio Solidão tem personagens dos mais variados, vivendo realidades paralelas, muitos dos quais, mesmo morando no mesmo condomínio, sequer se conhecem. Daí os diferentes sotaques e tons narrativos, os preconceitos e pontos de vista conflitantes, sem uma verdade absoluta, o que soaria falso.
O elevador aparece também como um personagem. É bastante simbólico, emula a inconstância do ser humano, o sobe e desce a que estamos sujeitos na vida.
Interessante leitura. Não pensei nisso sobre o elevador. O ascensorista em questão emergiu da minha experiência. Fui ascensorista e realmente inventei a corrida de elevadores quando trabalhava no prédio do INPS, ali no Sagrada Família.
“Acho que um dos papéis da literatura é apontar os dramas e as contradições do ser humano, mas sem perder a dimensão do entretenimento.”
Comente sobre o papel da literatura, ao jogar luz – direta ou indiretamente – para as limitações e incompletudes do ser humano que perpassa todo o livro, a vida dos personagens, do protagonista Ramon Fernandez que, inclusive, faz terapia.
Acho que um dos papéis da literatura é apontar os dramas e as contradições do ser humano, mas sem perder a dimensão do entretenimento. De certa forma, o livro deve também incomodar o leitor, levando-o a se questionar e a questionar o mundo ao seu redor. Uma obra de arte deve sempre provocar reflexão, tirando o leito da zona de conforto. Se não fizer isso, não é arte. Pelo menos é o que eu penso.
A política, terreno de tantos embates e controvérsias, aparece na história quando você traz a figura de um ex-preso político e um policial civil aposentado.
Pois é. Esses dois personagens remontam ao período sombrio da ditadura militar, um período do qual não podemos nos esquecer. Vejo hoje pessoas que se dizem de bem pedindo intervenção militar e fico pensando onde foi que nós erramos. O livro também faz reflexões sobre os absurdos da guerra e do terrorismo, na fala de outros dois personagens. São temas atuais e acho que têm que ser debatidos. Quando esquecemos a história, corremos o risco de repeti-la. Alguém já disse isso.
“O livro também faz reflexões sobre os absurdos da guerra e do terrorismo, na fala de outros dois personagens. São temas atuais e acho que têm que ser debatidos.”
Torre tem uma simbologia bastante abrangente, além da estética – elemento histórico e narrativo recorrente no audiovisual e na literatura, denota poder, sugere prisão. O título do livro, cujas histórias se passam em uma torre de concreto, nos remete à ideia do “sozinho na multidão”.
Torre simboliza poder e isolamento, mas é também um símbolo fálico. Está presente em todas as culturas, desde a antiguidade. No entanto, só me dei conta do isolamento em plena multidão quando fui residir no JK. Temos ali mais de mil apartamentos e quase seis mil moradores. No entanto, quase ninguém conhece ninguém. Se fossem mil casas numa cidadezinha de seis mil habitantes, certamente haveria mais convivência social e menos solidão entre as pessoas. Na verdade, toda metrópole implica necessariamente em isolamento, competição e desconfiança.
“O livro reflete a realidade dos nossos dias, a solidão urbana, o impacto das redes sociais em nossas vidas, etc.”
O perfil de muitos personagens dialoga com o imaginário, sobretudo, de quem não mora no JK. Você não ficou receoso de reforçar estigmas – tendo em vista as transformações, o perfil dos novos moradores, o movimento de valorização da imagem do condomínio nos últimos anos?
Receio nenhum. Um romance é uma obra de ficção ambientada em determinado lugar e em dado momento histórico. A ficção é algo subjetivo, apenas sem abrir mão da verossimilhança. Eu não quis fazer uma reportagem, como aliás o Ramon explica aos policiais que o interrogam num dos últimos capítulos do livro. Assim como eu, Ramon é um jornalista aposentado e recém-divorciado vivendo um momento de crise e de reconstrução. Ele sai em busca de pessoas nas quais possa inspirar os personagens do romance que pretende escrever. E o romance é o próprio “Condomínio Solidão”. As várias narrativas seriam os depoimentos que ele recolheu ao longo de sua pesquisa como hipotéticos moradores do Conjunto JK. O livro reflete a realidade dos nossos dias, a solidão urbana, o impacto das redes sociais em nossas vidas, etc.
Condomínio Solidão
Autor: Jorge Fernando dos Santos
Editora: Caravana Grupo Editorial
Quanto: R$ 49,90
“Aluguei um duplex mobiliado e, de quebra, ganhei um belo horizonte. Como eu já disse, moro no trigésimo andar daquela torre. Pouca gente desfruta da paisagem que eu vejo lá de cima. Já subiu lá alguma vez, doutora? Não? Pois devia. Da janela da sala eu observo quase tudo ao redor. A cidade até parece um formigueiro. Sabe aquelas formigas que fazem montículos de terra parecidos com chaminés e pequenos edifícios? Pois então! Se bem que o nosso condomínio se parece mais com uma colmeia. Uma colmeia de vidro, pra ser exato. A diferença é que não temos uma rainha. Somos abelhas desgarradas, quase todas vivendo sozinhas e sem a consciência coletiva dos insetos. Tem espírito mais urbano que esse? Dizem que é uma tendência do nosso tempo. Uma vez assisti a um documentário sobre o Edifício Copan, que fica em São Paulo, e acho que é a mesma coisa. Por coincidência, também foi projetado pelo Niemeyer. Pensando bem, talvez os avanços tecnológicos tenham aumentado a solidão das pessoas. Quanto mais tecnologia, mais nos distanciamos uns dos outros. Pelo menos é o que eu acho. Mas, como disse Noel Rosa, quem acha vive se perdendo. Muita gente passa hora teclando com amigos virtuais e nem sabe o nome dos vizinhos. Eu olho esse povo da geração “i”, com seus brinquedinhos digitais, tipo iPads, iPods e não sei mais o quê, cada um fechado em sua bolha, sem prestar atenção nos outros. Dia desses, eu vi duas moças trombarem no passeio, enquanto caminhavam com os olhos grudados nas telas dos celulares. Achei graça quando uma delas perguntou à outra por que não olhava por onde anda. Quando fui morar naquela torre, eu sabia que as coisas seriam diferentes de tudo o que eu já tinha vivido antes. Mudei de vida radicalmente, depois do divórcio. Morei por muitos anos com mulher e filha, numa casa de sete cômodos, garagem e jardim. Hoje, o meu lar se resume a um quarto e sala. Tive que simplificar as coisas. De certo modo, fiquei mais perto de mim mesmo. Abri mão da casa e do carro, que deixei com a Regina, minha ex-mulher. Na verdade, eu nunca gostei de dirigir. O prédio onde moro e a atitude dos vizinhos fazem com que eu me sinta personagem de um filme B ou de um conto do Bukowski. Já leu Bukowski? Aquele velho safado conhecia tudo da alma humana.”
Condomínio Solidão, Jorge Fernando dos Santos