• 13.07.21
  • 8 min
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Rastros de uma identidade: a relação das diversas dimensões de Marcão

Marcão e o cão basset Totó posam, cada qual com seu skate, diante do bloco A do JK

Polivalente e inquieto, ainda que afeito às práticas meditativas e um tanto metódico. Essa é a impressão que Marco Oliveira, o Marcão, causou ao Viva JK na tarde de uma quinta-feira em que abriu as portas de seu apartamento no sétimo andar do bloco A  do Conjunto Governador Kubitschek para uma longa conversa em que se falou sobre os assuntos mais diversos. Afinal, mais uma característica do artista plástico, tatuador, halterofilista e skatista é saltar entre diversas histórias que revelam sobre dimensões de si, fazendo conexões e seguindo um fluxo de pensamento que lhe é particular.

Com precisão matemática, Marcão lembra de quando, em 1991, estabeleceu-se em um apartamento no 21º andar do JK. Foi levado ao local por uma tragédia: a pessoa com quem dividia um apartamento na rua Mato Grosso, também na região Centro-Sul da capital mineira, havia falecido. Ele, então, preferiu se mudar dali ao mesmo tempo que buscou um imóvel nas proximidades do lugar. “Antes, eu morava na avenida Augusto de Lima (na mesma região). Sempre trabalhei em agências de publicidade e em estúdios de tatuagem na Savassi, e sempre conseguia fazer tudo a pé. E, além disso, meu círculo de amizades está todo no entorno daqui”, explica. Quando voltou a ter que se mudar, decidiu apenas descer alguns andares na mesma torre, a mais horizontalizada, do mesmo prédio.

No apartamento tipo duplex, a porta de entrada dá para uma escada que sobe até a sala de visitas de Marcão, que é conjugada com a cozinha. Mais um lance de escadas para acessar banheiro e quarto. No local, a identidade do artista se impõe aos sentidos. O cheiro de incenso de sândalo e o som da música clássica são regra nas quintas-feiras. No espaço, ficam ao alcance das vistas – e das mãos – halteres para exercícios físicos, skates nos modelos carver, cruiser, “band aid” e longboard e um teclado elétrico. O teto, de uma textura que imita a composição de um céu claro com nuvens, tem uma espécie de luminária em formato de um dragão oriental. Um arquivo de metal acumula livros e outros ornamentos, entre eles uma caveira espanhola.

Marcão toca sax com sua sala ao fundo

Identidade

Cada detalhe ali disposto revela algo da história de Marcão, a começar pela música que escuta. Ocorre que ele possui uma criteriosa rotina sonora. Nas segundas e terças-feiras escuta jazz. As quartas são dedicadas ao blues e, as quintas-feiras, à música clássica. No dia em que recebeu o Viva JK, tomava o ambiente a música barroca do erudita germânico Johann Sebastian Bach. “Sexta-feira começo a esquentar, escuto IBM ou deep house. Sábado mantenho deep house ou psytrance. Domingo, eu começo com psytrance e, à noite, volto ao jazz”, narra. Essa sequência o ajuda a organizar sua rotina e suas ideias e o tranquiliza. Além disso, alimenta outro prazer: “Eu pratico saxofone todos os dias. Agora, estou meio parado porque a vizinha, que era a minha inspiração, se mudou”, diz.

A história é curiosa. Marcão vinha do fim de um relacionamento longo, que havia durado 25 anos. Entre idas e vindas, a relação ainda perdurou por mais 4 anos. Neste período, quando amargava uma inédita sensação de solidão em tanto tempo, foi perdendo o gosto pela música.

Então, em uma tarde à espera do elevador, bastou uma conversa para que ele, que recém havia chegado à casa dos 50 anos, desenvolvesse um sentimento de carinho e amizade por uma vizinha, reavivando em si o gosto pela experimentação musical. Nos breves minutos em que se conheceram, ela perguntou se era ele quem, tempos antes, interpretava no saxofone canções como “Tenderly”, composição do norte-americano Walter Gross que foi gravada pela primeira vez como uma valsa pelo pianista brasileiro Dick Farney e que depois foi transformada em jazz e se popularizou na versão de Nat King Cole. E, de repente, saber que a vizinha diariamente se aproximava da janela para ouvi-lo, como uma plateia cativa, o revigorou.

Embora de alguma maneira tivessem forjado um vínculo e, pela música, se comunicassem, nenhum deles buscou estabelecer uma relação de amizade mais íntima com o outro. Algo abstrato, o sentimento que passou a carregar consigo depois daquele furtivo encontro era capaz de resgatar o seu olhar de encantamento para as coisas da vida.

Foi também na música que Marcão buscou refúgio durante a pandemia de Covid-19. Nos meses de enclausuramento, adquiriu e aprendeu a tocar um teclado eletrônico. E, embora se considere hoje mais ligado ao jazz, o artista plástico ainda tem uma imagem muito associada ao heavy metal. Não é à toa. “Eu faço parte da geração que colocou o metal de Minas nas trilhas do mundo”, comenta, enquanto exibe ilustrações suas feitas para a gravadora Cogumelo, considerada a “casa” de proeminentes artistas do gênero nos anos de 1980. 

Detalhe: além de fazer a arte gráfica para discos da produtora, Marcão ainda era responsável pela segurança em shows em Belo Horizonte. “Era um tempo em que academia não era algo popular. Era quase coisa de ‘veado’. E eu já era grande. Já tinha vencido o campeonato mineiro de bodybuilder, isso em 1984”, recorda, emendando que já fez proteção em apresentação do Sepultura, o mais expressivo nome do metal mineiro. À época, Marcão conta que os irmãos Max e Iggor Cavalera eram hostilizados por fãs que acreditavam que a banda vinha se tornando excessivamente comercial. “Era como se metaleiro não pudesse ganhar dinheiro, como se isso fosse uma traição”, recorda.

Marcão posa de braços cruzados, antebraços inteiramente tatuados, vestindo camiseta preta e quepe de couro

Arte e corpo

O apartamento de Marcão, como a sua própria biografia, exibe como as diferentes dimensões de sua vida se cruzam e se misturam. Aos 57, ainda carrega consigo o prazer de manter o corpo ativo. “Levantei 430 kg nas pernas para comemorar meu último aniversário”, orgulha-se. Outro esporte que faz sua cabeça é o skate. Em geral, faz passeios na praça da Assembleia, na região Centro-Sul da capital, e leva consigo o cachorro Totó, que também faz o circuito em cima de uma prancha sobre rodas. A cena chama tanta atenção que virou notícia. Em dezembro do ano passado, o Jornal da Alterosa levou ao ar a reportagem “Cachorro skatista faz sucesso em praça de Belo Horizonte”.

Simbiose de interesses, é na tatuagem que arte gráfica e corpo se misturam. Como tatuador, Marcão assina o nome Horimaruco e conta ter sido batizado – à distância e por intermédio de um amigo – pelo mestre Horiyoshi III, um hiroshi, especializado em tatuagens tradicionais japonesas de corpo inteiro, ou “trajes”, chamados Irezumi ou Horimono.

E como não poderia ser diferente, o morar no JK também é contaminado por esses elementos que orbitam em torno de si. Marcão conta que as marcas de algumas entidades ligadas ao prédio, como a marca de um jornal local, foram desenhadas originalmente por ele.

Não é exagero dizer que Marcão se diverte com a maneira como sua aparência – ele ostenta tatuagens pelo corpo – e seus hábitos – como os rotineiros passeios de skate – impactam quem o vê. “Em geral, já me tomam como um metaleiro. O que não renego, até pelo meu passado, muito associado com esse movimento do metal. Mas, hoje, me considero mais jazz”, brinca. “E tem muita gente que, ao me olhar, acha que tenho hábitos anárquicos e, depois que me conhecem, se surpreendem e vão dizer: ‘Nossa, você é muito diferente do que eu pensava’”, cita ele, que, de tão metódico, tem até uma rotina musical. Da mesma maneira, acha graça quando visitas se deslumbram com o JK. “Para muitos, esse lugar ainda é mal visto. Imaginam que isso aqui vai ser uma bagunça, uma desordem. Mas, então, descobre que pode ser até um sossego, um refúgio”, inteira, rindo de todas essas situações em que o preconceito cai por terra.

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