• 05.07.21
  • 9 min
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JK frequenta memórias remotas de Vitor Afonso

Ilustrador nutre relação afetiva com o prédio

Ilustrações são o elemento mais presente no interior do apartamento semi-duplex em que vive o artista Vitor Afonso. Ganham as paredes do lugar desde réplicas gráficas de obras facilmente identificáveis – como uma gravura que reproduz a tela renascentista “Primavera”, de Sandro Botticelli, produzida em 1478, peça que ganhou de um professor – até trabalhos desenvolvidos por artistas desconhecidos – com os quais esbarrou pelas ruas do centro de Belo Horizonte e, em alguns casos, se ressente por terem cobrado dele tão pouco por um trabalho autoral. Mas, fundamentalmente, são desenhos feitos por si próprio, em diferentes fases de sua vida, que despertam curiosidade e encantamento em quem por ali se aconchega – disputando a atenção do visitante apenas com a vista da cidade que se impõe às amplas janelas do 12º andar do bloco B do edifício JK.

São também as ilustrações uma espécie de guia da história de Vitor. Em apenas 20 minutos de uma dessas conversas nunca breves que são comuns ao artista plástico, ele falou ao VivaJK sobre sua infância e como a vista do Conjunto Governador Kubitschek atravessou sua biografia desde os 4 anos, sempre lhe provocando arrebatamento. “Eu até tentei ficar de jejum para ter menos energia e falar menos, mas não adiantou”, reconheceu em meio à prosa, da qual também participa seu gato siamês, o Francisco, ou simplesmente Chico.

“Eu venho de uma família pobre, mas, quando era criança, ainda não precisava trabalhar. Mas já gostava de dinheiro”, comenta, emendando a história de quando, aos 8 anos, pediu dinheiro para a sua mãe a fim de comprar pipoca para revender no bairro em que ele morava, em Sabará, na região metropolitana. “Ela me deu R$ 20, que era muito dinheiro na época. Eu peguei ônibus e vim para o Centro de BH para tentar encontrar uma loja. Nessa andança, eu passei pelo prédio e já fiquei encantado. De alguma forma, notava que o lugar era familiar. Só depois, fui recordar: eu tinha visto a torre (do bloco B) quando passei por Belo Horizonte em uma viagem, quando me mudei para Sabará. Certamente, eu tinha uns 4 ou 5 anos de idade”, lembra.

O fato de o edifício ter ficado registrado à memória de Vitor, para além de esta ser uma obra marcante entendida como uma bússola por moradores de BH, se deve a uma característica própria. “Ainda pequeno, eu falava que sonhava em morar em um lugar em que ‘a chuva só molhasse’. Durante um tempo, minha família viveu em uma ocupação e, quando chovia, muita água entrava na casa. Então, eu pensava muito em morar, pensava em moradia mesmo”, admite. Por isso, ter trabalho era para ele, desde muito cedo, algo fundamental para que alcançasse o sonho de ter um cantinho em que se sentisse acolhido.

Vitor Afonso, homem negro de pele clara de 26 anos, está deitado sem camisa numa cama coberta por um lençol branco. Ele olha em direção ao parapeito de vidro opaco da janela do JK

Um olhar pela janela

Adolescente, o ímpeto artístico do rapaz começava a aparecer. “Com 14 anos, comecei a trabalhar como chargista para a Liga Operária, que era mantida pelo Sindicato dos Trabalhadores do Transporte Rodoviário de BH e RMBH, que funcionava perto do Fórum Lafayette (localizado na avenida Augusto de Lima, no bairro Barro Preto, Zona Sul da capital mineira)”. Todos os dias, embora recebesse vale transporte suficiente para desembarcar em frente à sede do local, Vitor preferia desembarcar no centro e seguir a pé até lá. “Passava em frente ao JK e ficava olhando as janelinhas, tentando entrever como era lá dentro”, reconhece. Uma vez, voltando de carona com um colega, de tanto encarar o edifício, ouviu dele algumas histórias – nem todas elas verídicas – sobre como era viver lá.

Um ano depois, quando ficou difícil conciliar trabalho e estudos, o adolescente se viu obrigado a abandonar as charges. Pelo menos profissionalmente. “Eu ainda estava na escola e continuava desenhando em tudo, inclusive nas carteiras. Uma vez desenhei em 16 delas. A diretora ligou para minha mãe, que mandou que eu ficasse depois da aula limpando todas”, conta, aos risos. Nesse dia, a sorte lhe sorriu outra vez. Um professor de matemática, sócio de uma estamparia, viu o estudante ali e quis saber o que tinha ocorrido. Papo vai, papo vem, pediu que Vitor levasse uma pasta para que ele pudesse ver seus desenhos. A boa impressão foi suficiente para que, então, recebesse o convite para trabalhar na empresa, que estava localizada no Complexo Industrial Marcel Philippe, popularmente conhecido como Vila Marzagão, em Sabará, e atendia grandes marcas brasileiras. Com pouco tempo, tornou-se arte-finalista.

O ofício que aprendeu é, ainda hoje, a sua principal fonte de renda. O apego aos detalhes garantiu que Vitor conseguisse novos contratos mesmo em períodos de crise para este mercado, como quando, com o dólar baixo, grifes preferiam importar tecido já estampado. Foi o que levou à derrocada o primeiro empreendimento em que trabalhou. A profissão ainda o levaria a viver em outras cidades de Minas, mas ele acabou voltando.

O artista plástico, contrariando aquele clichê do criativo desorganizado, tem o hábito de planejar sua vida – e diz ter o que fazer até por volta dos 100 anos, caso chegue lá. Assim, foi aos 21 que se casou e saiu definitivamente da casa dos pais. Aluguei com a minha esposa uma casinha no bairro Paraíso, em uma rua praticamente na divisa com o bairro Baleia, o terceiro mais alto de BH, atrás do Belvedere e do Mangabeiras”, diz, citando sua companheira, a modelista Raquel Farias, de 25 anos, com quem Vitor vive há 5 anos e que, por timidez, preferiu não participar da conversa. “Lá, neste imóvel, nós moramos na rua das Paineiras, a mais elevada do bairro. Todo dia, eu descia uma ladeirinha e via Belo Horizonte. E se destacava na vista a luzinha do (extinto) relógio do JK (removido em 2019)”, relembra. Anos depois, o casal começou a ter problemas com mofo na casa, razão pela qual decidiram se mudar. O centro era a região mais visada – e claro que o prédio que está em processo de tombamento desde 2008 estava no radar deles.

A oportunidade de se mudar para o Conjunto Governador Kubitschek veio há cinco anos com a notícia de um imóvel vazio, que seria alugado diretamente com o proprietário. Vitor e ele se encontraram em um bar, nas adjacências da praça Raul Soares. Conversaram por três horas. “Ele pediu cerveja, e eu pedi suco porque queria parecer bem responsável”, brinca. Saiu de lá praticamente com as chaves do duplex, sem sequer precisar de um fiador.

Amor pelo centro da capital

Morando na região central, Vitor descobriu novos prazeres, como o de reconhecer no tumultuado movimento de pessoas a calmaria do interior. “Mesmo o hipercentro de BH preserva características dos bairros residenciais. Costumo ir em uma vendinha e as atendentes já sabem, ao me ver, que vou pedir um pastel. E já escolhem a banana mais madurinha. Até enchem um pouco mais o copo de café”, diz ele, salientando como esse anonimato em meio à multidão, característico das grandes cidades, não é de todo uma realidade em Minas.

E, assim como fez aos 8 anos, mantém o hábito de circular pelos mercados das redondezas atrás de ofertas. “Eu gosto de tudo muito prático e sou caseiro. As pessoas me perguntavam porque morar no centro se não gosto muito de sair para os bares. A resposta é essa: tem farmácia, tem supermercado, posso pesquisar preços a pé. Até comprei um carrinho com rodinha de feira para facilitar essa via sacra”, comenta. Na relação com os arredores do prédio, outro ponto forte é alcançar rapidamente o Mercado Central, “onde encontro queijo canastra com preço melhor que mussarela em alguns supermercados”, assegura.

O artista plástico nutre boa relação com seus vizinhos, mas evita um deles. “Peguei antipatia depois que ele andou fazendo comentários transfóbicos sobre outra moradora, que ele dizia que era trans e que, segundo ele, estava roubando ponto de internet”, pontua, lembrando que, mais recentemente, a vizinha alvo dos comentários acabou se mudando. Ele nutre simpatia até por uma senhora que vive no mesmo andar e que cumpri o clichê da vizinha intrometida, daquelas que olha pela porta entreaberta. “Acho uma curiosidade legítima, de quem quer saber quem mora ao lado”, diz. Estudante do curso de história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), antes que a pandemia da Covid-19 levasse à suspensão das aulas presenciais, era comum que ele conversasse longamente com uma vizinha, que é funcionária na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). O novo coronavírus, aliás, custou quatro meses sem renda para ele, no que contou com a compreensão do proprietário do imóvel, com quem estabeleceu uma relação de amizade.

Significados

“Pra mim, a vida tem que ter significado. Eu sempre falei: o sol nasce na minha sala e se põe no meu quarto”, reflete Vitor Afonso, enquanto explica como morar no JK afeta o seu ritmo e sua produção. “Quando eu olho pela janela, dependendo do ângulo, vejo só céu, só a cidade ou um misto de concreto e natureza. Isso dá um sentido imagético para o meu dia”, avalia. “Daí, se preciso fazer um desenho, só preciso olhar pela janela. Se quero algo mais orgânico, miro as nuvens ou as serras, se quero coisas geométricas e retas, olho para o desenho urbano, que também não é reto, é bem vivo, cheio de curvas e até parece se dobrar para cima do apartamento”, conclui, observando o relevo irregular de Belo Horizonte. 

O artista ainda emenda que o lugar que habita o completa de alguma maneira: “Às vezes, deito a cabeça no chão e escuto as vibrações, o barulho das instalações antigas, da água correndo, de alguma coisa caindo e rolando… Eu sei, é viagem minha. São tijolos. Mas, de certa forma, é algo vivo também. É muita gente aqui, somos células de um organismo”. Apesar desse grande contingente humano, Vítor não visualiza no prédio o que chamaria de uma comunidade. “É algo que não existe. Talvez essa interação maior aconteça mais na internet. Aqui, no dia a dia, mal vejo meus vizinhos”, admite.

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